Passa-se pela esquina das Marechais e a memória fica impregnada de sons, cores, movimentos de gente, carros, motos, carrinhos de catadores de papel. Na rotina da urbe esse lugar é só mais um dos milhares de cruzamentos de ruas. Para indicar localização aproximada se diz: ali na Deodoro, quase esquina com a Floriano. Endereços, vias de tráfego, os nomes dos Marechais evocam apenas isso. Serôdia vingança de Policarpo Quaresma! Trazer à lembrança os dois alagoanos que marcaram o início da República brasileira se destina a discorrer sobre ideias e fatos em torno do conceito de monarquia e república.
As pessoas costumam romantizar o passado monárquico; todo mundo se imagina rei, rainha, duquesa, visconde, sua alteza. Ninguém pensa que essas pessoas eram parcela ínfima da população e a plebe, desprovida de qualquer glamour, era o cenário da existência da imensa maioria. Não os salões dourados dos palácios, com saraus, banquetes, jardins monumentais, sim a vida breve, bruta, sórdida das multidões desprovidas de importância política. Flanar pela vida como faziam os nobres ou viver na danação da servidão era situação imutável decorrente do nascimento; nenhum mérito ou demérito, apenas fato inelutável. A plebeia de sapatinho de cristal para ir ao baile onde o príncipe se apaixona por ela e, ao badalo da meia-noite, a mágica se esvanece, até que no dia seguinte o príncipe localiza o pé da bela encantada, é fantasia, conto da carochinha. Não havia casamentos interestamentais. A bela plebeia seria, no máximo, a concubina preferida do príncipe, que por noblesse oblige se casaria com uma feiosa do mesmo estrato social.
Na monarquia, a diferença entre as pessoas é vista como normal: uns nascem para mandar, outros, para obedecer. Na república, a ideia de base é oposta: todos são politicamente iguais e a posição de mando e obediência é circunstancial, não natural e eterna. A igualdade política não é exatamente partilha amorosa do poder. O sonho da fraternidade anarquista é delírio acerbo. O exercício do poder é exclusivista, no sentido de que, quando alguém o exerce, exclui outros do exercício naquele momento. Por analogia com a matéria, não se exerce o mesmo poder, ao mesmo tempo, no mesmo lugar.
A amplitude do rol dos que têm possibilidade efetiva de exercer poder e do leque de ocasiões para exercício distingue a república dos demais regimes políticos. A existência de razoável chance de qualquer cidadão exercer funções públicas se materializa em regras que asseguram amplo acesso aos espaços de poder. A perpetuação de grupos unidos por laços de parentesco diminui as possibilidades de acesso à função pública. Quando a igualdade original de condições e a aferição do mérito político ou técnico são substituídas pelo nascimento nesse ou naquele grupo social, tal qual acontecia nas monarquias, como critério para definir o acesso ao poder, há falseamento dos princípios republicanos. Os filhos da folhas, expressão usada em Portugal no século 16 para designar a parentela que vivia a expensas da folha de pagamento do erário, são a negação do conceito de república.
Aos 120 anos de república, ainda temos dinastias no serviço público legislativo, executivo e judiciário, enfraquecendo a confiança nas instituições, pois a lealdade familiar tem primazia sobre a responsabilidade para cumprir os deveres. Quem não é da famiglia dos filhos da folha se sente desamparado, pois a impessoalidade que deve reger as relações nas atividades estatais se transmuta em indiferença, descaso.
A multidão que atravessa a faixa de pedestres nas Marechais talvez não pense que caminha num espaço cuja denominação se destina a manter acesa a lembrança dos valores republicanos, mas as pessoas que apertam o passo para terminar a travessia têm a esperança de viver em ambiente politicamente saudável. Bem, o semáforo abriu.
A democracia real não é partilha amorosa do poder. A partilha completa do poder é, tecnicamente falando, anarquia. O exercício do poder é exclusivista, no sentido de que quando alguém o exerce, exclui outros do exercício naquele momento. Por analogia com a matéria, não se exerce poder ao mesmo tempo, no mesmo lugar.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.