O talento do Belchior transformou em poesia o temor de voar. Por medo de avião, segurei pela primeira vez na tua mão, aquele toque em teu cetim, coisa adolescente, James Dean. Só a arte para retratar de modo suave um sofrimento profundo, telúrico, que nos leva a grudar na terra como gatos numa árvore e ao mesmo tempo desejar o prazer intenso do voo, com a irresponsabilidade juvenil de Ícaro diante da prudência senecta de Dédalo. Divididos entre as estatísticas, a tecnologia, a elegância dos uniformes, a pose de semideus dos pilotos e o metal rasgado, torcido, não conseguimos definir qual das emoções fala mais forte. Um acidente grave em milhões de voos; ora, pode ser justamente na minha viagem! Serei o número fatídico? Por outro lado, pensando bem, bilhões já voaram! Assim, mal resolvidos, voamos. Alguns exagerados desenvolvem aerofobias. À parte a patologia, dá aperto no peito de qualquer um quando o avião descola do chão.

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Fomos feitos para a terra, não a água e o céu. O medo é o freio acionado pelo instinto de sobrevivência para que a audácia, a vontade de ir onde ninguém jamais foi, não se sobreponha ao imperativo biológico de manter o corpo apto à sobrevivência dos genes egoístas. Nós morremos, os genes são eternos. Uma vida pacata, com os pés no chão, pode ser enfadonha, mas é geneticamente muito mais adequada do que a vida do Capitão Kirk, ícone da aventura humana, mas um potencial genecida. Admiramos a intrepidez, porém nos acomodamos nas poltronas para vê-la de modo ficcional ou praticada pelos outros, a quem atribuímos parafusos a menos, miolo mole. À bravura, respondemos que voar não é preciso, viver é preciso.

A tecnologia nos empurra para longe de casa e faz trabalhar muito mais do que antanho. Os futurólogos viam um admirável mundo novo no qual o ócio seria a regra porque as máquinas fariam tudo. Ora, a facilidade do avião compele as pessoas a laborar cada vez mais longe de suas plagas e os computadores convidam à atividade todas as horas, todos os dias, inclusive quando encapsuladas nas aeronaves, como o pessoal da aviação costuma se referir aos aviões, com a afetação dos iniciados nos mistérios do mais pesado que ar. Premido por esses imperativos tecnológicos, qualquer sucesso profissional tem o vôo como rito e risco inevitáveis. A praticidade dos meios de telecomunicação não superou a interação pessoal, tetê-à-tête, como se diz no Brasil. Apesar da videoconferência, existe a necessidade emocional de imediação com o outro quando se vai entabular negócio, proferir aula, fazer acordo político, namorar. Aí, voar e viver são precisos.

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Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.