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Com o texto de hoje completa-se o primeiro ano de publicação semanal. Confesso: pensei em escrever "primeiro ano de publicação hebdomadária". Se nesse tempo usei palavras repetidas e algumas que quase nunca são ditas foi por pura paixão pela riqueza do léxico. Escrevê-las é um tributo à beleza da língua que usamos para a rotina da vivência, os prazeres da convivência e o êxtase do partilhamento do pensamento. Resgatar palavras que o cotidiano marginaliza, mostrar que excelem no transporte do pensamento entre mentes, é um modo de dizer às pessoas que falar português é nosso fado. Falar português com a musicalidade do Brasil é nossa bossa. Cultivar esse broto da última flor do Lácio, como jardineiro fiel, é o propósito da paleologia das palavras e, às vezes, da neologia, ao criar palavras para facilitar os encontros pela vida, em meio a tantos desencontros.

O falante sempre acredita que diz algo nunca dito. Cantando, os Titãs dizem que as palavras são iguais sendo diferentes; palavras para falar o que já foi dito com todas as letras. Talvez, sob o sol não haja novidade sobre o papel. Contudo, não fosse a ingênua crença na inovação, motor para pensar e falar, a humanidade se entregaria ao mutismo e sem o trânsito do pensamento não haveria a perspectiva de interculturalidade, de formação do patrimônio coletivo de conhecimento, muito além dos limites de uma única mente. A copiosa algaravia de sons e letras atiça a audição e a visão, mobilizando o cérebro, em si um mundo, à conexão e participação na torrente de informações, opiniões e refutações, que compõem o ambiente operacional no qual cada pessoa cria e executa a sua programação de existência.

No início era o verbo, depois a grafia. Natureza e cultura. Todos falam; alguns escrevem. A palavra falada voa; a escrita, permanece. As palavras não são do pó e a ele não voltam. Grafadas, imortalizam-se. Esse atributo da criatura deifica o criador e Platão, Confúcio, Cícero, Camões não morrem. Escrevendo, se vence o espaço e o tempo. Essa vitória permite a construção de afinidades entre pessoas que nunca se comunicarão pela expressão facial ou pela entonação da voz. O acúmulo de amizades culturais forma linhas de pensamento que cativam pessoas e as estimulam a produzir novas sondagens nos infinitos da sabedoria. A escrita propicia a construção de pontes telecomunicativas – expressão de Peter Sloterdijk – capazes de transpor os muros da multiculturalidade que se confina temerosa do contágio.

A alfabetização massiva fez de quase todos emissores e receptores de comunicação remota, porém seu valor esmaeceu diante do rádio e da televisão. À época de sua disseminação a escrita se tornou secundária, mera ferramenta para atas de reunião de condomínio, declarações de amor lanhadas em árvores, rabiscos ininteligíveis em fachadas de prédios. Embora hoje muitos saibam escrever, as cartas não encontram multidões ávidas por textos; a concentração reflexiva do ato de ler cedeu passo à diversão límbica do ato de ver. Uma nação deixou de ser feita com homens e livros e passou a se materializar com pessoas e televisores.

No imaginário popular há glorificação dos alfabetizados, capazes de reproduzir sons de poetas mortos. Uma reverência da ignorância à sapiência como talento e não, construção. Por outro lado, no imaginário das elites se associa a postura humanista (o sapiens deve domesticar o brutus) ao hábito da escrita e leitura: quem adquire a paciência para escrever e ler, aprende a inibir a bestialidade. O certo é que as letras veiculam memes, menor partícula útil de informação, e a cultura vai se reproduzindo em combinações meméticas susceptíveis a seleção cultural que nos alcança todos os dias nas escolhas que a escassez de tempo impõe.

Caros leitores, agradeço as críticas e atribuo os elogios à generosidade.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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