Sempre foi perigoso estar vivo; animais, doenças, fome, agressividade de outras pessoas. À medida que se desenvolveu tecnologia para dominar a natureza, os animais foram para o zoológico, os remédios venceram doenças e a fome, antes uma regra, se tornou exceção. Pode-se dizer que a humanidade é vencedora na luta pela sobrevivência. Os engenheiros e os médicos foram os marechais dessa vitória. Mas e a convivência? Os sociólogos, antropólogos, psicólogos, juristas, filósofos, capitanearam uma marcha circular, na qual a história de violência se repete. Na condição humana, somos sempre os mesmos, quer sejamos invejosos vizinhos de Confúcio, o vil guia religioso de Malcolm X, Dilermando e os dois Euclydes ou catadores de papel que escravizam pessoas para ... catar papel!
A violência é uma constante e rápido olhar sobre o passado chega a causar azia; não apenas violência em escala industrial como a protagonizada por Hitler, Stalin, Pol Pot, também a artesanal, aquela que atingia um ou alguns indivíduos. A memória da infância tem registro de roubos, homicídios, estupros. A inexistência da televisão ajudava a manter as crianças numa inocência prazerosa, mas volta e meia as fofocas na escola portavam a notícia de acontecimentos tristes e ficávamos com medo por alguns dias, até que a rotina ingênua retornasse. Nesse ambiente de ignorância pueril, se tinha medo da loira fantasma, do carroceiro que raptava crianças e afogava no rio. Sim, havia violência, porém alguma coisa está diferente hoje, quando tantos eventos se sucedem de modo contínuo e o medo é permanente; não há tempo para o relaxamento que tornava a vida amena. Aumentou a quantidade e a qualidade da violência ou houve incremento de informação? O helicóptero blindado alvejado por projéteis tracejantes ao voar sobre uma favela no Rio de Janeiro simboliza mudança de escala, de patamar novo?
A perspectiva histórica demonstra que não havia paraíso e repentinamente se abriram as portas do inferno. Ao entrar na vida, recebe-se uma hiperdose de esperança; contudo, o otimismo para viver não deve embaçar o raciocínio e nos tornar tolos, como ovelhas na fila para a boca do lobo imaginando que até a nossa vez ele estará saciado. Por outro lado, o pessimismo existencial também é conservador; ver o inferno nos outros é arrogância conservadora. Somos uma sucessão de paraísos e infernos e temos o poder de modular as intensidades. Significa dizer que a convivência em sociedade pode ser piorada ou melhorada conforme os acordos e as práticas das pessoas nas suas relações. O grau de insegurança no cotidiano brasileiro não é normal. Resignar-se, esperando que o paraíso venha em outra vida, é permanecer nesse inferno.
Individualmente somos invadidos pela sensação de impotência diante do gigantismo da transformação necessária para que possamos viver com os medos de antigamente. Não existe vida sem medo, mas podemos organizar nossa sociedade para que não vivamos em permanente pavor. Quais são as tarefas para alcançar esse objetivo? Não sei. A única certeza de que tenho é a de que a postura cínica de esperar pela honestidade dos outros para então agir de modo honesto, produz círculo vicioso que perpetua a imoralidade, líquido amniótico da violência. Agir de modo honesto nos assuntos graúdos e nos miúdos, sem expectativa de reciprocidade, é o primeiro passo ao alcance de todos, ricos e pobres, cultos e analfabetos.
Do guarda que apitava à noite passamos para o fusca da rádio-patrulha e chegamos ao helicóptero blindado. Mantida essa linha, nossos netos viverão em bunkers e verão tanques e bazucas nas ruas. Será que a mediocridade moral das nossas instituições deixará esse legado de tristeza?
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.