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Friedmann Wendpap

Hipátia

Filósofa, com foco na matemática e na astronomia, viveu em Alexandria no período em que o Império Romano se tornara oficialmente cristão e os não cristãos, minoria. Linda, recusou propostas de casamento para manter a liberdade pessoal num tempo em que o marido era dono da esposa. Pagã, recusou submeter o seu magistério aos dogmas da nascente religião cristã. Sexagenária, foi esquartejada dentro de uma igreja por turba que perseguia infiéis. Do seu pensamento restaram fragmentos referidos por ex-alunos e alguns instrumentos utilizados até hoje, como o hidrômetro. O filme que relata a história mescla componentes reais e ficcionais, mas apresenta bem os efeitos deletérios da intolerância religiosa e mostra o desespero cósmico de quem é apanhado na colisão entre culturas que encerram seu ciclo e outras que iniciam a hegemonia.

A belíssima história de Hipátia enseja análises sobre muitos aspectos da condição humana, especialmente a situação da mulher, referida por Jared Diamond, como besta de carga na maioria das sociedades, aludindo a episódio ocorrido quando da sua chegada a Papua-Nova Guiné: contratou trabalhadores para levar a bagagem e víveres, incluindo uma saca de 50 quilos de arroz, para a qual destacou quatro homens; mais adiante, quando se encontrou com os carregadores na trilha a caminho do seu posto de observação, uma mulher, que pesava menos que o arroz, estava curvada sob a saca, caminhando morro acima enquanto os homens ficavam de mãos abanando. A filósofa escapou desse destino ordinário e trágico, mas sucumbiu à faca amolada da fé cega.

Sobretudo, me chamou a atenção o momento histórico da existência de Hipatia: uma civilização madura o suficiente para a epifania de uma mulher genial, cedeu passo à brutalidade pueril da nova civilização que imolou a filósofa simplesmente porque ela não poderia existir na ideologia que punha a mulher como fonte de todos os males, desde o pecado original da volúpia representada pela maçã rubra. Por que as culturas, no seu apogeu, fenecem? Será que no Ocidente viveremos obscurantismos já vividos? Não é preciso ir à Idade Média; basta se lembrar de Stalin, Hitler e suas crias. Todos reprimiram a liberdade de pensar e seus componentes de discordar, pesquisar, mudar, inovar. Claro, há filhotes soltos, mas nada comparável ao pensamento único do nazismo ou do stalinismo que se transformaram em religiões do deus Estado. A questão parece ser uma infindável luta entre a aceitação e afirmação da pluralidade de pensamento e modo de viver e a posição contrária que vê na diversidade a dissolução, o pecado, a fraqueza do espírito.

Como uma sociedade aberta, secular, protetora da diversidade, deve proteger a sua existência diante de quem, aproveitando a liberdade, age como liberticida? Guantânamo, com certeza, não é a resposta certa. Como uma sociedade protetora da diversidade deve lidar com quem constrói guetos pretextando multiculturalidade? Penso que a lei francesa do xador não seja a resposta certa. Encontrar a dose correta de firmeza é muito difícil. Não dá para, à João Figueiredo, dizer que prende e arrebenta quem não quiser a democracia.

Lenin, arauto do Estado fortíssimo, total, entendia que a forma superior da democracia era o consenso. Na verdade, o consenso é o acordo dos mal-informados ou dos oprimidos. As pessoas cientes e livres discordam tanto quanto concordam e, onde há liberdade, haverá maiorias ocasionais, temáticas, nunca o confinamento perpétuo de uma ideia ou causa à condição minoritária. Quando há liberdade, as opiniões divergentes têm publicidade e oportunidade para se firmarem como referências de caminhos alternativos aos majoritários.

São Cirilo, o algoz de Hipátia, se posicionava como Lenin quanto à liberdade de pensar e, ao sacrificá-la, matou simbolicamente a civilização greco-romana que amava a sabedoria, viesse ela pela voz feminina ou masculina, de um crente ou incréu. Seremos capazes de resistir ao fundamentalismo sem nos tornarmos fundamentalistas?

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