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O ato de dormir une todos os animais; rastejantes asquerosos a humanos poderosos, sempre chega a hora de dormir. Sono biológico, sono social, sono para restauração, sono por preguiça. Dormir porque a mama mandou, a pa­­troa chamou, Morfeu venceu. Camas com nomes bregas em inglês – queen size, king size –, daquelas que não se consegue passar vassoura embaixo para tirar as aranhas-marrons, beliche do quarto dos meninos, catre do monge, trapos do mendigo, aninham-se todos em posição igual e dormem. Ao fim do sono, camas de seda e de papelão se parecem com ninhos. A Bela e a Feia são adormecidas; Obama e Osama, Sarkozy e Carla Bruni, crentes e incréus, são vencidos por Hipnos. Nivelamento pela animalidade.

Na tevê, nos filmes as pessoas acordam arrumadinhas, cabelo alinhado, bocas sedutoras, olhos brilhantes. Na real, amantes ama­­nhecem amassados, hálito da jiboia depois de digerir o elefante e o príncipe, nessa hora, na­­da tem de encantado, ainda mais que os olhos estão ramelados. Bebês levantam cedo, pu­­xam as cobertas do casal, geram déficit de sono, numa conta-corrente sempre devedora. Con­­tu­­do, as caras de pão amanhecido nesses encontros matutinos na hora de escovar os dentes, dar um sorriso de hortelã e olhar o sol que dá o ar da sua graça na Serra do Mar uma vez por mês, compõem prazeres pequenos que geram saldo positivo da vida. Café, chimarrão, leite quen­­­­te, pão francês, frio de tiritar os dentes e um beijo com a bo­­ca de maçã; aromas, sensações, uma abertura de jornada em três tempos. Matutino, vespertino, noturno – desavisados, se tornam nome de trigêmeos – divisão do tempo que medeia os sonos indivisos, completos, num único lance de tempo.

Estou acordado e todos dormem. A casa silencia e alguma inquietude dos sons do dia, que ressoam como memória difusa, faz a noite chegar devagar. A es­­curidão é silêncio para os olhos. Sons silentes, breus luminosos. A noite é uma criança, vamos dançar, ler, viver; dormir é o que se faz e os desejos, os planos? Ora, ficam para amanhã que será outro dia, da mais louca alegria. Mas ainda é noite, fragmentos musicais voam pela mente como meteoros na chuva de Perséiades. Ouvir música, deixar que a voz do João Gilberto, dizendo que vai contar coisas que só o coração pode entender, desconecte o cé­­rebro do corpo e que a vigília e o sono se entendam, pode ser uma boa ideia para que a noite venha me envolver.

Cãibras dolorosas hilariantes interrompem a noite, dedos do pé se repuxam, massagem na panturrilha, o sono volta. Será que as musas adormecidas, de proporção áurea como Afrodite, também se contorcem retesadas pelas cãibras? Pesadelos, gole d’água, devolver criança para a cama, xixi, sonhar com os números da loteria, espreguiçar-se. Ah, a delícia de esticar os músculos na borda da cama! Botar o cão para fora, esperar que ela se espreguice, recolher o jornal, é uma nova aurora. Na noite finda nada houve e tudo aconteceu; o re­­pouso foi uma faina hercúlea e o dia exigirá labor.

A cidade ruge de manhã, machuca os ouvidos que ainda têm os sons leves da noite. O dia passa e se estende pela noite que começa; acendem-se lâmpadas, bilhões delas, numa recusa à cadência da natureza, como se pudéssemos com microssóis retardar, impedir, o imperativo das esposas e mães: está na hora de dormir.

Friedmann Wenpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.

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