A Venezuela, por meio de um referendo popular, modificou a Constituição pela enésima vez desde que Hugo Chávez começou a governar. O novo texto permite que o presidente da República seja candidato à reeleição quantas vezes desejar. Essa mesma modificação havia sido rejeitada há cerca de um ano por pequena margem de votos e agora foi aprovada com 55%. Chávez faz planos para a Presidência até 2030. Isso é democracia?
Francisco Campos, ministro da Justiça durante o primeiro governo de Getúlio Vargas, dizia que a democracia era um modo tão afeminado de governar quanto a tediosa rotina forense, na qual os fortes e os fracos têm voz garantida. Para ele a verdadeira democracia acontecia na vibração direta entre as massas e o líder nos comícios e plebiscitos. Essa política testosterônica era o antídoto para a esterilidade dos debates infindáveis dos Parlamentos. A recíproca excitação entre povo e caudilho geraria o desenvolvimento. A seu tempo, o ideólogo do Estado Novo era considerado um pensador de direita, próximo ao ideário que sustentava o fascismo italiano.
Na Venezuela não há ideólogo capaz de apresentar um programa que permita exame científico das ideias que lastreiam o socialismo do século 21. Apesar da vacuidade intelectual do chavismo, há nítida semelhança com o desprezo de Francisco Campos pelas formalidades da democracia. O atual presidente do Brasil, na sua forma prosaica de pensar e falar, percebeu essa similaridade ao dizer que a "Venezuela tem democracia demais". Vale dizer, o tempo todo as massas estão agitadas para enfrentar inimigos da revolução, desfechar golpes nas pessoas que ousam pensar de modo diferente, calar as minorias. Plebiscitos, comícios, passeatas, milícias, comitês de bairro, vigilância ideológica, perseguição pela opinião, restrição à diversidade. Não há dedicação à estabilidade institucional, condição do desenvolvimento econômico.
Na Venezuela, a política passou a ser tudo e não há apreço pelo trabalho. Quem é contra o governo sofre perseguições que inibem ou impedem o trabalho; quem é a favor, não precisa trabalhar ou tem condição de fingir que trabalha, pois conta com benesses do dinheiro público. Com isso, as condições econômicas estão em franco declínio e a chaga da politização da economia apareceu na escassez de ovos, leite, cereais, pão. Um país tropical, com solo fértil para produzir comida, vê-se na contingência de importar quase todos os mantimentos.
A maioria nem sempre tem razão. A ocasional insensatez da maioria não é a voz do povo. A ditadura da maioria, a exemplo do que aconteceu com Hitler, Stalin, Pol Pot, produz pobreza e violência igual à ditadura da minoria. Imprescindível para que haja democracia é o império da lei, a abertura da sociedade à diversidade do pensamento e comportamento, os direitos civis, a liberdade e a pluralidade de imprensa.
A possibilidade ilimitada de mandatos sucessivos cria as condições para que o mandatário capture a vontade do mandante. Esse fenômeno é de fácil constatação nas situações da vida privada quando alguém constitui um procurador e vai renovando a procuração por anos a fio. Quando se vê, o procurador assenhoreou-se da vida do outorgante. A percepção desse perigo é intuitiva e ninguém com juízo perfeito dá procuração pela vida toda a outra pessoa. Basta transportar a cautela da vida particular para a pública para ter a certeza de que a limitação dos mandatos sucessivos é uma das condições para que a república não se transforme em monarquia.
Os projetos políticos de boa qualidade não dependem de uma personalidade forte para produzir frutos. Se o chavismo fosse bom para o desenvolvimento da Venezuela, não dependeria de Hugo Chávez. A exemplo de Cuba, a Venezuela se tornará uma monarquia hereditária?
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.