Ao pensar num amigo caríssimo falecido em acidente de carro faz alguns anos, a cujo velório não pude comparecer, as imagens e sons de nossas prosas, avenças e desavenças, circularam nítidas pela minha memória, dando a sensação de presença. Como ele está morto se ainda existe para mim? A Laika parou para farejar arbustos na praça; me desconectei da função de babá canino e comecei a conjecturar sobre mente e corpo, indagando como seria se, antes da colisão que desfuncionou o corpo, houvessem feito cópia da mente desse finado amigo. Sim, uma cópia para assegurar a continuidade da sistema informacional no caso de falhas! Se essa providência tivesse sido tomada, poderia interagir com aquela mente instigante que eu tanto apreciava. Ora, diz a razão fria, isso não existe! Não existe é diferente de nunca existirá responde a razão quente.
Pode-se transferir toda a mente de um computador para outro. O meu portátil negro fosco, antiquado, é continente de informações sistematizadas, isto é, sintetizadas, catalogadas, arquivadas e prontas à utilização. Essa mente pode "viver" em outro computador simultaneamente e se desenvolver de modo distinto da mente original ao receber estímulos ambientais peculiares. Hoje a mente de computador não faz juízos de valor, não tem consciência de si, nem sensações sutis como leve desconfiança, quedinha amorosa, simpatia, antipatia. Operando moral e sentimentalmente neutra com as informações, as mentes de computadores podem ser sincronizadas e igualadas em conteúdo, se mantendo idênticas umas às outras.
A mente humana é, nesse momento em que divago, muito mais sofisticada e não se sabe como fazer cópias. Quando for possível, haverá bancos de dados com cópias de segurança para o caso de danos irreversíveis ao corpo que hospeda a mente original. A cópia arquivada poderá ficar inerte muitos anos e ser ressuscitada sem as experiências que a original vivenciou. Para a mente reserva seria a sensação de voltar de hibernação e encontrar o mundo com novidades que a sua via original presenciou, mas ela não. Dados da experiência vivida seriam perdidos, mas o indivíduo se manteria existindo. Mortalidade do corpo, não da alma.
Se a mente original e a cópia viverem simultaneamente em corpos distintos, a interação com outras pessoas, o clima, angústias, alegrias, levará a nuances de diferenciações; algo como gêmeos que são fisicamente idênticos e mentalmente semelhantes, mas não iguais. Se isso acontecer, talvez se esteja diante de gênese assexuada. A cópia se transformaria em outra pessoa e talvez quisesse fazer cópia de si para preservar a sua identidade mental. Nesse ponto da divagação pensei nos vírus e me assustei com a ide ia de inoculação de fragmentos exógenos de memória, opiniões, valores morais, não vividos pela mente, porém recebidos por ela como se fossem autênticos. Humm, melhor prestar atenção à Laika que já está me rodeando querendo voltar para casa.
Fazer clone do corpo da pessoa não é a imortalidade. Esse foco está equivocado. O clone não terá as experiências, vivências, interações do original. Será outra pessoa, outra mente, sem a memória que assegura a identidade. A pessoa é a mente. Criar as condições para que ela não se apague é a receita da eternidade. Essa pode ser a verdadeira semelhança com Deus. Não a parte que é máquina, sim a mente.
Começou a chover, melhor acelerar o passo e aceitar a saudade de quem se foi de modo irreversível.
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