Não se trata de lamúria de algum curitibano exagerado; é o período de clausura da juíza Maria Lourdes Afiuni, da Venezuela, presa meia hora depois de revogar a prisão do banqueiro Eligio Cedeño, ex-aliado e hoje adversário de Hugo Chávez. A juíza está encarcerada no mesmo local onde estão mulheres que ela, no exercício da função, condenou à reclusão. Para não ser vítima de vingança, ou de assassinato político disfarçado de vingança, ela permanece o tempo todo na cela. Acusada de receber dinheiro para conceder a liberdade, está presa sem que ocorra o julgamento e a perspectiva é ruim diante da afirmação direta de Chávez de que ela deve ficar 30 anos na cadeia.
O bolichavismo (algo assim como Bolliwood e seus filmes melodramáticos), resultante do hibridismo do fantasma de Bolívar com as escassas ideias de Hugo Chávez, detona as instituições, apela para a relação direta do caudilho com as massas e, de modo falastrão, faz o réquiem da democracia como se a culpa pelo falecimento fosse daqueles que resistem a essa velha novidade latino-americana: o pai dos pobres, o guia dos descamisados, o amigo do povo. A tristeza se acentua quando essa simplificação chã do processo político expande seu ideário para outros países e encontra ressonância forte na lógica do discurso populista que marca a maioria das candidaturas que estão postas no horário eleitoral brasileiro. Nem um candidato faz afirmação de direitos do povo e referência às correlatas obrigações dos indivíduos. É a época da "vitimização", na qual todo mundo tem direito e ninguém tem obrigação. Aí se vai para modelo de Estado que provê como se fosse o criador do indivíduo e pode exigir gratidão pelas concessões que faz. Desaparece o cidadão e surge o protegido, o hipossuficiente, o cliente.
Quando tudo parecia estar perdido e que voltaríamos aos anos 50, talvez com Nestor e Cristina travestidos de Perón e Evita no parlatório da Casa Rosada acenando para a multidão sedenta de carinho de pai e mãe, de Cuba veio uma grande notícia: Fidel, ao ser perguntado sobre a exportação do modelo cubano, respondeu que ele nem sequer funciona para Cuba. Pessoas que têm a Ilha como Disneylândia ideológica sonham com o dia em que a terra brasilis se tornará um grande canavial, dirão que o grande timoneiro está gagá. Outras buscarão socorro nas caixinhas tarja-preta para o bode existencial decorrente da afirmação do messias de que Havana não é a capital do paraíso.
Será que depois dessa afirmação tão contundente, Chávez continuará doando petróleo a Cuba? A economia cubana não gera riqueza nem para comprar óleo diesel para os antiquados geradores de eletricidade; em troca da doação, Chávez recebia a bênção de Fidel para as suas bizarrices e ataques às residuais instituições democráticas da Venezuela, além de salvo-conduto para se meter na política interna dos vizinhos, enviando milhões de dólares em dinheiro vivo para a campanha eleitoral de Cristina Kirchner. Como nos sentiríamos se algum dos candidatos que pede nosso voto fosse financiado por estrangeiros? A quem ele deve lealdade? À pátria ou a Hugo Chávez?
Fidel, por óbvio, fez a ressalva de que não rejeita as ideias da Revolução, mas reconhece que o Estado se tornou grande demais na vida econômica do país. Ora, a ressalva é mera afirmação genérica, quase metafísica sobre uma revolução que se teima em grafar com maiúscula, colocada diante da afirmação específica de que a vida econômica do país e o Estado são coisas distintas e que o domínio do Estado sobre a economia deve ser menor do que o existente em Cuba. Esse é o recado central a ser lido com atraso de duas décadas por quem não o entendeu quando ruiu a Alemanha Oriental. Se o Estado não controla a economia, os indivíduos se emancipam, ocorre empoderamento, para usar linguagem feia, mas hegemônica nas escolas brasileiras que pouco ensinam de matemática e biologia e muito de ideologia. A livre iniciativa é espaço de emancipação, de exercício de autonomia, do poder de escolher para si a forma de gerar riqueza para sobreviver e para bem viver. Quando o Estado esmaga a livre iniciativa econômica, se afasta da democracia e se aproxima da tirania.
O revolucionário senecto recriminou a postura atômica-beligerante do presidente do Irã, um dos ídolos da política externa chavista e brasileira. Na verdade, explodiu o raciocínio simplista, rudimentar, do "hay americanos, soy contra". A política externa brasileira deve ser orientada pela ideia de que age a favor do Brasil e não contra alguém. Abraçar ditadores, presidentes eleitos de modo duvidoso, dando-lhes o manto do apoio brasileiro, e não ter voz para pedir que a juíza venezuelana tenha garantido o direito fundamental a julgamento imparcial em tempo razoável, é fazer ouvidos moucos à sapiência, quae sera tamen, de Fidel Castro.
O sol que alcançará os presos políticos de Cuba também pode chegar à Venezuela.
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