A imprensa deu grande repercussão à prisão e entrega de Radovan Karadzic ao Tribunal para os Crimes de Guerra da ex-Iugoslávia, instalado em Haia, Holanda. Imagino que, apesar desse destaque, um bom número de leitores passou ligeiro pela notícia, sem refletir sobre as implicações morais e políticas, porque o genocídio na Bósnia é um fato antigo, distante da nossa rotina. A violência aqui no Brasil exaure a atenção e leva a uma sensação de que o genocídio e os crimes de guerra são coisas que não nos pertencem e com a qual não temos tempo, nem motivo para nos preocupar. Porém, o julgamento daquele homem barbudo, grisalho, marcará um momento de vitória da civilidade sobre a barbárie e, nas aulas de história no futuro, será referido como evento semelhante ao Tribunal de Nuremberg e o de Tóquio, que ocorreram logo após a Segunda Guerra Mundial.
A insegurança que os brasileiros sentem é diferente da que assolou os bósnios. No nosso caso, podemos reclamar e até mudar o governo que se mostra incapaz de reduzir a criminalidade. Na Bósnia, o governo era a fonte da violência. Massacrar uma parcela da população bósnia, de etnia não sérvia, era uma política de Estado. Numa situação dessas, as vítimas não têm porto seguro, não há alguém com o dever e poder de protegê-las.
Os brasileiros sabem que se tornar vítima da violência é uma possibilidade constante e atemorizante. Contudo, essa hipótese tem um forte componente de álea, de acaso. Todos os não-sérvios da Bósnia sabiam que estavam marcados. Não havia sorte ou azar, riqueza ou pobreza, para atrair a atenção de um criminoso. Bastava não ser do grupo étnico que dominava a máquina de guerra do governo para estar na lista de vítimas. Essa certeza inviabiliza o curso normal da vida e as pessoas entram em pânico absoluto, deslocando-se em grandes massas humanas à cata de refúgio.
O cerco às cidades, o ataque às colunas de civis que caminhavam pelas estradas tentando escapar, foram praticados em larga escala. Soldados bem treinados e armados matavam dezenas de pessoas (homens, mulheres, crianças) por dia. Algumas cidades ficaram sitiadas por meses, anos. Sarajevo ficou cercada pela milícia comandada por Radovan por quase quatro anos. Nesse período faltou água, comida, remédios e, estima-se, morreram quinze mil pessoas; até os animais de estimação foram devorados pelas pessoas famintas.
A descrição da violência e da tristeza nunca é suficiente para que ela não seja repetida. A natureza humana parece imutável e as barbáries de hoje são iguais as de ontem e, talvez, as de amanhã. Ao não depositar expectativas nos indivíduos, aceitando-os como são, sem contar com a redenção, o valor das instituições se torna mais significativo. A reprovação ética à violência deve se expressar de modo não violento, mas suficientemente firme para que a punição seja um fato e não, quimera.
O problema para julgamento e eventual punição sempre foi alcançar a alta hierarquia política e militar dos Estados que praticaram genocídio e crimes de guerra. Os Tribunais Internacionais são um importante esforço de civilidade para que a impunidade deixe de ser uma certeza e a possibilidade de prisão perpétua seja inibidora da violência em escala industrial.
Para que nós brasileiros não sejamos algozes ou vítimas desse tipo de violência, é importante entender e apoiar as iniciativas da ONU para julgar, com todas as garantias do processo penal, Radovan e outras pessoas que venham a praticar genocídio em qualquer lugar do mundo.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito na UTP.
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