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O frasco esguio como belo corpo de mulher repousa sobre o balcão. A cortina enfuna com o vento fresco que a noite traz. Co­­chilo, embalado pela melodia da praia de Itapuã, imaginando ouvir o diz que diz que macio que brota dos coqueirais. A cortina balouça, roça o frasco; a cortina, o perfume; os olhos se fe­­cham para dormir nos braços morenos da Lua e.... súbito o som desperta o olhar a tempo de ver cacos em voo centrífugo. O líquido precioso, eau de parfum, esparrama pelo chão, feito batatinha quando nasce. E agora, como noticiar a tragédia a quem veste Kenzo nas noites de frio e, nas de calor, número 5. Coco Chanel, vestir as mulheres com aroma, cobrindo a nudez com a ebriez do perfume para que toda ela seja apreciada? Nisto, nem tu pensastes! E eu? Eu preciso criar uma solução para a tragédia que maculará o sábado. Não haverá o barulho nervoso do salto quinze defronte ao espelho quando o corpo gira para os olhos examinarem o caimento do vestido atrás, lados e frente. Ah, como as mulheres se tornam plásticas nesse momento, parece que todas nasceram para o contorcionismo. Já se passaram uns dez segundos da queda; a cortina livre do obstáculo avança quarto adentro. Será que salto pela janela e desapareço? O meu sumiço pode desviar a atenção da perda do perfume floral? Sou um rato ou um homem sem olfato? A pergunta que eu não queria ouvir vem da cozinha: o que houve, caiu alguma coisa? Talvez o melhor seja falar meias verdades à meia-luz. Sabe aquele vidro de... de... aquele copo de vidro que ganhei de brinde no mercado, pois é, ele caiu. Não venha para o quarto agora, preciso limpar o chão, recolher os meus cacos. Isso me lembra a Marina e os caquinhos do velho mundo que quebrou, não tem mais jeito. Mulher, fique na sala, aproveite para ver o noticiário enquanto dou um jeito no piso do quarto. Quer café, chá, massagem nos pés? Permaneça onde está, pelo amor de Deus, penso em palavras silenciosas para que meus pensamentos não sejam ouvidos por aquela que é capaz de percebê-los antes que eu os tenha conscientes. Ela adivinha o que eu vou pensar. Isso me faz estar sempre pronto pra recomeçar.

Mulher assim, que faz do perfume o complemento das vestes, anda como se o mundo fosse passarela, se emociona com a masculinidade intensa que leva o feminino ao apogeu, merece que o seu rastro aromático no sábado à noite não se perca por causa do perfumecídio praticado por uma cortina de voil. Febril, o cérebro maquina alternativa para não relatar a verdade; não pela mentira, mas porque a ela sempre estarei atento e enquanto houver tempo, que se mantenha o encanto. A angústia pela queda anuvia o pensamento, mas a possibilidade de tristeza no semblante porcelânico me move a fazer alguma coisa. O quê? Quem sabe, argumentar docemente com uma cachaça de rolha e, bêbado, arrumar problema novo para esquecer o antigo. A razão volta instantaneamente e diz que embriaguez charmosa só a de Vinícius de Moraes.

Hirto, a medida do tempo se perde, uns 30 segundos se foram e nada foi feito. Passos me despertam da inação e uma exclamação suave me leva do inferno ao nirvana: marido, percebi que não era um copo, muito menos de um brinde que você não ga­­nhou! Vamos recolher os pedaços de vidro, secar o piso, sem chorar sobre o perfume derramado. Acocorado, esfregando o chão com chumaço de algodão de tirar maquiagem, sinto o verde cintilante do olhar carinhoso que me acompanha e dou razão a Pessoa: tudo vale a pena quando a paixão não é pequena.

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