Renato Russo dizia que o som de motocicletas querendo atenção às três da manhã é música urbana. Se ele tivesse vivido para se tornar um cinqüentão, talvez mudasse de idéia e passasse a pensar que as cidades não produzem música, apenas barulho. É certo que a ebulição hormonal juvenil se aguça na cacofonia e no exagero sonoro, mas mesmo os jovens são dotados de sensibilidade intelectiva para apreciar o silêncio. Essa diferença natural entre a juventude e os que já são jovens há muito tempo explica a alegria de uns e o desconforto de outros diante de alguns gêneros musicais e do burburinho da urbe. Porém, os ruídos da cidade moderna são estorvo que transcende essa distinção causada pela idade. Nela, extinguiu-se o silêncio e sempre, em todos os lugares, há sons.

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Para que os leitores não tenham a impressão de que se trata de uma rabugice senil, peço que se lembrem da última ocasião em que foram ao supermercado e não se irritaram com um locutor aos berros anunciando ofertas e nos intervalos colocando ruídos de bate-estaca (com a pretensão de isso seja música) em volume que daria para movimentar uma danceteria. Em seguida o tum-tum é sucedido por algum rap em inglês recheado de palavrões e obscenidades que fariam o coro de uma torcida em estádio parecer coisa de jardim-de-infância. Acontece que o leitor/consumidor foi ao mercado depois de um dia de trabalho, durante o qual ouviu conversas de dezenas de pessoas, decibéis abundantes de ônibus, caminhões, aviões, latidos, batidas. Na loja, onde os jovens não vão porque não cuidam das compras ou não têm dinheiro para comprar, a pessoa adulta é alvejada por canhões sonoros como se fosse necessário estimulá-la tal qual um adolescente.

Depois das gôndolas sob ataque acústico, chega a fila do caixa. Talvez os gurus de marketing que definem a disposição das prateleiras, as cores, acreditem que devamos todos dançar na fila para esquecer o tempo que ali perdemos porque a loja não tem pessoas suficientes para atender com presteza.

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A noite, que antigamente trazia a escuridão e o silêncio, tornou-se o tempo para cuidar das coisas da casa, tais como fornir a despensa, comprar lâmpadas novas, roupas, sapatos, em meio ao rugido dos alto falantes. Com isso, acabou-se a escuridão que dava repouso aos olhos e acabaram-se os sons da natureza no início da noite, quando grilos, rãs, besouros, morcegos, corujas, produziam vibrações suaves indutoras de sono agradável que findava na aurora, quando a sonoridade matutina crescia junto com a luz solar. A cidade grande expulsou esses animais e não soa afinado no tempo imaginar seja possível preservar a sonoridade suave do campo. Mas o que é ruim não precisa ficar pior sob o império do barulho onipresente.

A modernidade trouxe a cultura da excitação sonora, do ruído, da música ambiente em todos os ambientes. No mercado, barbearia, farmácia, academia de ginástica, sala de cirurgia, centros comerciais, sons de automóveis, músicas, motos. Não há momentos de silêncio, durante os quais se possa ouvir os próprios pensamentos. Parece que a civilização que estamos criando tem medo de escutar a si própria, tem medo da introspecção que o silêncio proporciona. Para evitar que as pessoas pensem, reflitam, dificulta-se o solilóquio, o conversar consigo mesmo.

Por fim, uma súplica aos marqueteiros: dêem aos consumidores o prazer do silêncio. Se vocês estiverem convencidos de que a música é imprescindível para a venda, brindem-nos com melodias brasileiras de boa qualidade e não despejem lixo em inglês na estafada audição do público.

Friedamann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.