A tragédia de trânsito que vitimou dois jovens no Bairro do Mossunguê trouxe à tona vários problemas não resolvidos ou mal solucionados na convivência social brasileira. Dentre eles, a embriaguez ao volante, o excesso de velocidade que faz do carro uma bala perdida, a precariedade dos procedimentos policiais no local do fato, a carência de decoro de pessoas investidas de deveres públicos e o foro especial para autoridades envolvidas em ilicitudes. Um evento dessa magnitude provoca intenso questionamento, mas o tempo e o surgimento de outros acontecimentos igualmente horrorosos tende a deixar tudo numa névoa de esquecimento amortecido, no qual se sabe que a situação não é boa, pode ser modificada se houver esforço para a mudança, porém, ao fim e ao cabo, o estrépito diminui, os problemas submergem, as pessoas seguem a rotina de reclamar, de dizer que o Brasil não é um país sério, que alguém deve fazer alguma coisa. Somos avessos aos enfrentamentos nítidos, decididos, dos problemas da vida em coletividade; impera a expectativa de que as coisas se resolvam sozinhas ou que os outros deem um jeito.

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Não adianta reclamar do Brasil: ele é o que nós somos, fazemos, votamos, pensamos. Atirar lixo numa rua brasileira porque todo mundo faz isso e depositar numa lixeira de Tóquio porque todo japonês assim o faz é a assunção de fragilidade de caráter, de postura macunaímica, quase sem caráter. O ambiente cultural e político é produto do pensamento e decisões das pessoas que o compõe. As pessoas fazem o ambiente, não o contrário. É postura cínica explicar a própria menoridade moral a partir da pequenez alheia. Ainda que seja explicável a má conduta tendo em conta o ambiente ruim, nunca uma imoralidade se torna justa porque muita gente a pratica.

Dirigir bêbado, por causa de álcool, maconha, cocaína, qualquer dessas porcarias que afrouxam os freios morais, é um atentado ao direito que as pessoas têm de circular livremente pelo espaço público. Não existe liberdade sem segurança; com medo, ninguém é livre. Se o padrão moral é minúsculo, o outro é sempre uma ameaça potencial à segurança pessoal. A conduta imoral de alguém ao volante de um carro afeta a liberdade de centenas de pessoas. Quando alguém está preso indevidamente numa cadeia, cabe habeas corpus contra a autoridade que determinou a reclusão; porém inexiste defesa contra o tolhimento do direito de ir e vir causado por um ébrio. A imprudente combinação de direção e drogas não é mera rebeldia juvenil, é uma ofensa aos direitos fundamentais à vida, liberdade, segurança e propriedade das pessoas que estão no trajeto do embriagado. Afagos não são pedagógicos.

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Autoridades têm o dever do decoro; são referências de conduta e a indecorosidade deve ser punida sem rodeios. Alguém elegeria para síndico do prédio o morador de vida mais desregrada? A pessoa pública representa milhares de outras que esperam comportamentos escorreitos. Parodiando Joãozinho Trinta, o povo gosta de elegância e honestidade.

Por fim, o foro privilegiado é o direito de ser julgado por juízes diferentes daqueles que atuam nas causas criminais onde não há autoridades envolvidas. No flagrante de dois motoristas bêbados fazendo racha entre si, se um deles for juiz, deputado, prefeito, os processos criminais correrão em instâncias separadas. Na discussão sobre o reforma política o foro privilegiado é questionado de modo apaixonado e muitos propõem a extinção completa. O problema é a amplitude da proteção, não a existência dela. Estender o privilégio para as condutas comuns, praticadas na rotina da vida, está errado. A autoridade difere dos outros pela carga de deveres; os privilégios devem estar estreitamente ligados ao cumprimento das obrigações. Fora disso, qualquer vantagem é antirepublicana. Agora é o momento crítico para enfrentar essa discussão de frente, sem jeitinhos escorregadios.

Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.