A chuva pesada escurece o céu e transforma as ruas em rios. Pessoas encharcadas se aglomeram sob marquises. O trânsito fica paralisado e os vidros do ônibus embaçam. O aguaceiro de fazer inveja aos paulistas traz a alegria da abundância, mas a sensação de que a cidade é frágil causa uma pontinha de tristeza. A penumbra das nuvens parece apertar o coração e, abrigado no batente da porta da loja de eletrodomésticos, observa a reação das pessoas ao noticiário que vem do televisor ligado. Humm, baixo-astral geral.
Alguém diz que nunca antes na história deste país choveu tanto assim e relaciona a seca em São Paulo ao fim dos tempos. Inicio gestos de quem vai falar alguma coisa e desisto no meio do caminho. O silêncio é interrompido por "ham-ham", talvez "né". Sons que escaparam da minha boca e para a interlocutora significaram concordância. Estimulada pelo meu apoio, desata os nós que amarram a língua e fala em tom apocalíptico sobre as notícias da tevê. A imagem dantesca do homem sendo queimado vivo numa jaula; a expressão de tristeza pré-sal da ex-presidente da Petrobras; o preço da gasolina, da passagem de ônibus; as cenas da queda do avião em Taiwan.
A senhorinha parece estar na sala de casa, conversando com os netos. A chuva amaina. Pergunto se ela precisa de ajuda para atravessar a Marechal Deodoro porque a calçada está muito lisa. Nesse momento ela percebe que sou um estranho, alguém da multidão e, delicadamente, recusa a oferta. Cada um vai pro seu lado. Ouço o choc-choc das sapatilhas molhadas da vovozinha e desisto de me abrigar rente às paredes. Entrego-me à chuva e caminho lentamente pelo meio da calçada. Não sou o único. A roupa transmite o frio da água para o corpo e muitos tiritam.
Tento ver o termômetro no alto do Centro Comercial Itália. Da posição em que estou não há ângulo de visão. Calculo que a sensação seja de uns doze graus. Curitiba continua a mesma. Dobro a esquina da Presidente Faria em direção à Praça Santos Andrade. Há tempos um pinheiro caiu e matou gente. Atemorizado, faço desvio que me ponha a salvo de desastre que acometia rotineiramente os humanos pré-urbanos. Cada selva tem perigos peculiares. Relva paradisíaca, só no pano de fundo da tela dos computadores.
No canto da praça, na confluência com a 13 de Maio, algumas moças idosas, parcamente vestidas à procura de trabalho, ficam juntinhas para se aquecer. A chuva espantou a freguesia e elas vão embora com ar de quem encerrou o expediente.
O telhado do ponto de ônibus ressoa os pingos grossos que voltaram a desabar do céu. Nos dias calorentos de janeiro, no mesmo lugar, havia quem reclamava das queimaduras do sol; duas semanas depois, pragueja-se pelo motivo oposto: não há sol.
Um carrão passa apressado e lança a água do asfalto na área do ponto do ônibus. Todo mundo pula, resmunga e não escapa do chuá. O carnaval terá de ser muito bom para apagar essas amarguras dos primeiros dias de 2015.
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