A vivência da democracia sob as regras da Constituição de 1988 demonstrou que não se atingiu ainda uma situação ótima que no toca às relações entre representados e representantes, entre povo e políticos. Os mandatários cometem abuso do poder que receberam dos mandantes e não há meios eficientes para impedir que os excessos ocorram ou para punir quem abusa. Assim, os outorgantes não se sentem representados pelos outorgados e a condução dos assuntos públicos queda como problema mal resolvido, sem que o povo tenha esperança de resolver. Fica uma situação frouxa que provoca distanciamento entre os cidadãos e os gestores públicos.
A democracia direta tem a virtude de permitir a participação pessoal dos interessados e, ao mesmo tempo, o defeito de exigir que todos façam política todo o tempo, coisa impraticável numa sociedade que impõe à maioria o dever de trabalhar para sobreviver. Aristóteles ensinava que a democracia corria o risco de se corromper e se transformar em oclocracia, governo dos esfarrapados, que não respeita direitos das minorias. Ele pensava tendo em conta apenas a democracia na forma direta como a que vicejou fugazmente em Atenas.
A democracia indireta, na qual o poder é exercido por representação, foi inventada na independência norte-americana. As pessoas do povo, titulares do poder político, outorgam procuração a alguns pares para que esses zelem pelas coisas públicas. A eleição é o momento de passar a procuração. Esse mecanismo funciona razoavelmente bem entre um número pequeno de outorgantes e outorgados. O autor da procuração tem condição de acompanhar de perto a atuação do seu procurador e pode, caso perca a confiança, não renovar a outorga de poderes quando expirar o prazo. Contudo, esse método se mostra deficiente quando há grande número de pessoas envolvidas, geralmente contadas à casa de milhões. Os mandantes não conhecem os mandatários e o voto, modo de constituir o procurador, é dado às cegas. Durante o exercício do mandato as estripulias, improbidades, crimes, praticados pelo outorgado contra os interesses dos outorgantes não chegam ao conhecimento e compreensão das multidões. Assim, a democracia indireta tende a degenerar num governo oligárquico no qual os mandatários capturam a vontade e o discernimento dos mandantes.
As tentativas de matiz marxista de construir democracias por meio de comitês, sovietes, diretórios populares, geraram burocracias que subtraíram o poder do povo concentrando-o na classe política; fenômeno que os russos denominaram de nomenklatura. Democracia sem povo é engodo, é lobo em pelo de cordeiro. Lutar contra a tirania é mais simples do que pugnar contra a ditadura travestida de democracia. Inimigos rígidos são mais leais que os plásticos.
A reforma política, sempre anunciada e nunca encarnada, é passo fundamental para o ajuste fino do sistema que construímos em 1988. Castelos não declarados ao Fisco, enriquecimentos meteóricos, condutas corporativas similares à omertá mafiosa, não impedem a reeleição, mas envenenam o ambiente institucional, fazendo prevalecer o sentimento de desconfiança que leva a nivelamento por baixo: se são todos ladrões, vou votar naquele que me der mais vantagem imediata. Os políticos que compreendem a importância da ética para o desenvolvimento, em razão da diminuição dos custos de transação propiciada pela confiança entre o povo e os representantes, têm o dever de criar novos freios sobre a conduta daqueles que agem em nome da comunidade. A perda da esperança na democracia é a dantesca porta do inferno.
Friedmann Wendpap é juiz federal e professor de Direito da UTP.
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