Antigamente a observação inicial numa visita à casa de alguém era: "repara não, a gente é pobre, mas é limpinho". Essa conjunção adversativa servia para romper a ideia corrente de associação entre pobreza e sujeira. O nexo entre as duas situações não é de todo inválido porque a pobreza extrema tem algo de massacrante que reduz as pessoas a uma apatia de acomodação que forma inércia cultural. Naqueles tempos as embalagens eram de papel, os alimentos vendidos a granel, as vasilhas de gasosa, retornáveis. Jovens, saibam que se compravam as vasilhas e nas despensas havia gradil de madeira com seis ou doze nichos. Quem não tinha as garrafas, pagava muito caro por elas! Ai de quem quebrasse as garrafas de vidro do leite que ficavam sobre o muro para a troca que o leiteiro fazia de madrugada, quando entregava leite, nata, manteiga.
Os aparelhos e máquinas da casa vinham embalados em papelão e quadros de madeira que depois eram aproveitados para fazer carrinhos de rolimã, grade do galinheiro, caverna para brincadeiras de esconde-esconde. Quando chegaram as embalagens plásticas do leite pasteurizado, a facilidade de não precisar ferver (havia uma bolacha de porcelana que ficava no fundo da leiteira para impedir que a fervura transbordasse), não precisar lavar a muque as garrafas causou a sensação de modernidade: bastava abrir a pontinha do saco, pô-lo numa jarra e pronto, servir.
Abrir as embalagens e depois lançá-las despreocupadamente na lixeira é novidade nova, coisa de menos de 30 anos. Até então, o lixo da casa era orgânico e, sempre, em pequena quantidade porque se aproveitava o arroz de tresantonte para virado à paulista. Hoje, plástico, papel alumínio, metais e o material híbrido das embalagens tetrapak formam montes de lixo a cada refeição. Quando a alimentação vem pronta, há muito mais resíduos inorgânicos. O iogurte delicioso de agora é aquele copinho sujo que rola amanhã no meio da rua. A mudança do modo de consumir não foi acompanhada por políticas adequadas à riqueza que trouxe facilidades à mesa ou para a compra de um aparelho novo, mas pôs imundície nas ruas. Essa afirmação não é birra de velho; é a constatação de quem se lembra da pobreza e dos gramados, calçadas, bueiros, rios limpos. Os sacos plásticos que o vento espalha por todo lado não são leve incômodo colateral às benesses da civilização industrial; são praga que envenena com polímero todos os animais da cadeia alimentar e enfeiam, enfeiam muito, causando a sensação de desleixo.
Os portadores do transtorno obsessivo compulsivo de limpeza e ordem talvez não se afetem com a sujeira e desordem nos espaços públicos porque têm a impressão de insignificância diante da magnitude do problema. Está na hora da sociedade inteira ficar com TOC de limpeza e ordem. A associação quase automática entre riqueza e limpeza é falaciosa. A casa dos ricos pode estar limpa, mas as ruas e as praças, espaços de todos, estão emporcalhadas. A higiene, o zelo não são práxis conservadoras; a sujeira não é revolucionária. O interior dos automóveis, casas, condomínios, bem arrumados e os lugares de convivência social degradados é má percepção da cidadania. Para que os cidadãos possam se encontrar, viver politicamente a cidade, a habitalidade é condição primeira. A praça é a casa cívica e deve ser tão limpa e agradável quanto a casa da família.
Os candidatos poderiam se manifestar sobre a atenção que darão à implementação da Lei de Resíduos Sólidos recém-vigente. Sobretudo, deveriam assumir compromisso de nunca mais fazer vista grossa para os lixões ardendo em fogo e fedendo na periferia das cidades. Não é preciso ser ecorradical ou maníaco compulsivo para querer mais limpeza; basta ter o desejo de viver a cidadania.
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