O encanto do Paulinho da Viola com a passagem da Portela, escola de samba toda em azul, produziu momento mágico da música brasileira: "foi um rio que passou em minha vida e o meu coração se deixou levar", diz o poeta ao fechar os versos que me vêm à mente quando vejo os rios Iguaçu, Tibagi, Piquiri, Ivaí, Paranapanema, Paraná. Sinto-me distinguido pelo gentílico paranaense; a minha identidade está relacionada ao caudal gigante do sul do mundo.
Rios velozes, furiosos, a se afastar do mar, fluindo para dentro do continente, ponteados de cascatas, corredeiras, pincelam o mosaico cultural dos paranaenses que partilham sons, cheiros, cores, medos, alegrias, histórias e estórias dos rios. As balsas movidas a força animal em grossas cordas estendidas sobre as águas do Iguaçu trouxeram os colonos gaúchos até a fronteira com o Paraguai. Depois, motores estacionários em rebocadores improvisados tinham ruído sincopado, lento, que parecia incapaz de vencer a cheia no Piquiri, dando medo de que, de repente, tudo fosse por água abaixo.
Chegaram as pontes. Imensas, pareciam vitória do engenho humano sobre a face divisora do rio. Os de lá e os de cá agora eram um só. O rodado do carro fazia barulho gostoso quando passava pelas fendas da dilatação do concreto. Blup, blup, blup. A diversão era contar quantas partes compunham cada ponte ao longo da viagem. Quando começava declive acentuado já havia a preparação para saber como seria a ponte e se daria para ver as águas. Para quem usou balsa nos rios grandes e pontes de madeira sobre os estreitos, as de cimento e ferro, com dezenas, centenas de metros, eram fantásticas.
Pena que a ingenuidade infantil dos primórdios do sistema viário do Paraná se manteve ao longo das décadas. Pontes estreitas que não comportam os caminhões largos; inseguras nas muretas que são mero adorno e, pior de tudo, quase rentes à linha dágua. Em 1975 a enchente cobrindo a ponte era cena quase de cinema e não perturbava a infância saber que a cidade estava isolada do mundo porque os rios haviam transbordado. Para quem até ontem não tinha pontes, ficar dois, três dias sem elas não era problema muito grave.
Outros tempos, outros tempos. Hoje, com milhões de veículos em circulação diuturna, sistemas de logística que dependem de entregas pontuais, pessoas morando numa cidade e trabalhando noutra, os bloqueios quase corriqueiros causados pela chuva são inaceitáveis. Atraso de vida inexplicável ante a capacidade da engenharia moderna, da riqueza do Estado, do preço do pedágio.
Com a fábula de recursos já vertidos para as estradas, como explicar que ainda não haja pontes duplicadas, altas o suficiente para suportar as variações sazonais das águas e, quiçá, a passagem de embarcações de hipotético sistema hidroviário?
A memória nostálgica dos rios vai ficar, pelo jeito, só com a velha geração. A juventude fixará imagens horrendas de automóveis submersos, casas demolidas, vidas perdidas, pontes atravancadas de detritos, lama, paus, lixo. Os rios ontem causavam alegrias, orgulho; hoje, tristeza, temor e não inspiram poesias nem metáforas positivas.
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