Nas confusões causadas por "bleque-bloques" nas ruas da cidade de São Paulo, o serralheiro Itamar Santos teve o Fusca incendiado na noite do sábado, 25 de janeiro, quando voltava da igreja com amigos da congregação. Tiveram o azar de cruzar com os baderneiros e um colchão de espuma em chamas foi lançado sobre o carro, incinerado rapidamente.
Há ligação curiosa entre o nome Itamar e o Fusca, desde que o finado presidente Itamar Franco, num arrojo de arcaísmo, pediu o retorno da fabricação dos besouros, a Volkswagen atendeu, e a série de 93 ficou conhecida como "Fusca Itamar". O Itamar serralheiro tinha um 75 que servia ao trabalho e passeio, sem charme de relíquia ou modismo cult. Era só um carro velho, de gente comum, que labuta para viver e naquele dia estava no lugar errado, na hora errada.
A carcaça calcinada lembra um esqueleto depois do ataque de piranhas. O frenesi de quem crê na violência como parteira da história torna o militante cego, surdo, bruto, burro, agindo como cardume em rio do Pantanal. A individualidade, a capacidade de pensar, ponderar, perdoar, apiedar-se, são suprimidas pela hipnose da palavra de ordem, pela desculpa tosca de que todos os meios são válidos porque a intenção exigir saúde, educação no padrão Fifa é nobre. A indagação do Itamar ("O que eu tenho a ver com a Copa do Mundo? Nem a estádio eu vou") demole qualquer argumento que tente estabelecer correlação justa entre os meios violentos e as finalidades pretendidas.
A tragédia de Itamar levou algumas pessoas a organizar, via internet, arrecadação de dinheiro para a compra de outro carro. A quotização, até onde se tem notícia, não alcançou R$ 10 mil. Curioso o contraste com a fortuna dos condenados do mensalão que reuniram milhares de reais em poucas horas para pagar as penas de multa. Para autores de crimes lesa-democracia, a solidariedade foi instantânea e profícua. Para uma vítima de democraticidas pouca gente deu atenção.
Pode ser que a doação aos condenados pelo Judiciário tenha ocorrido com intensidade fantástica porque são famosos e cheios de amigos ricos. O anonimato de Itamar, a amizade com pessoas tão pobres quanto ele, gente que vai em frente sem ter com quem contar, fez dele mais uma vítima sem história, sem glamour. Itamar é o estereótipo de gente humilde poetizada por Vinicius.
Contudo, alguém se sensibilizou com a desgraça de Itamar e doou uma Brasília reluzente, com jeito de zero, merecedora de placa preta, exclusiva de carros antigos que mantêm características originais e boa conservação como aqueles expostos no Alto do São Francisco, nas manhãs de domingo.
Não é preciso chegar ao óbolo da viúva para dimensionar esse gesto de caridade, bastando observar que ele extravasa a relação entre doador e donatário, alcançando significação política porque demonstra que existe solidariedade legítima, desinteressada, condição mínima para a vida em coletividade. A doação não foi motivada por identidade ideológica, partidária, omertà, retribuição a favores pretéritos.
Solidariedade em sentido estrito, não conluio.
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