O dia alvoreceu azul. Azul que azuleja o dia no verso do Djavan. Curitiba, a nublada, nem parecia ser o que é, no frescor da aurora sem o frio que dói nos ossos. Como pode um dia desses ser quinta! Claro, sábado e domingo serão gris, úmidos, tiritantes.
Os minutos voam, penso que o rádio-relógio mostra o tempo errado, acelerado, enquanto a música fala sobre coisas que ficam claras no raiar do dia. As obrigações começam a premer os botões da responsabilidade e latejam na cabeça: não há tempo, não há tempo. Ablução matinal. Água frígida. As aulas, o trabalho, trânsito, ônibus. Para tudo há hora; medida com relógios, sóis, ampulhetas ou cântaros que gotejam, a hora é tirana.
A luz nova imanta o olhar. A infinitude do azul me faz fitar até onde a visão se perde. Momentos se foram e fiquei com a impressão de que o azul também me fitou.
Quero esse dia para mim, mas não tenho tempo para a contemplação, fruição, percepção. Primum vivere deinde philosophari, cogito com os botões e, tentando viver e filosofar simultaneamente, balbucio que tenho tudo, menos tempo. Nem sequer o há para deitar na calçada ainda gelada, sentir o mundo girar e deliciar-se com a leve náusea que essa sensação causa. Não posso, você não pode. Ninguém pode. Deveres, compromissos, convenções, exigências. Meio-dia. Ainda o azul.
Apressadas, as pessoas comentam sobre a leveza do dia enquanto se consomem na penumbra de lajes, telhados, coberturas, toldos. Ninguém lagarteia ao sol. Tudo à mão, menos tempo. A tarde começa com as fainas vespertinas, compridas, estafantes, ponteiros lentos. A luz se torna antiga e o dia azul vai sendo devorado pela noite de fugaz breu rútilo, pontilhado de estrelas.
A nublada, que não dá tempo ao tempo, logo vê cascata brumosa descendo as encostas da Serra do Mar e o edredom de nuvens cobre o céu. Quando o azul me extasiará outra vez?
Angustiado, me sentindo carente do bem mais precioso do mundo, imagino o tempo como prêmio de loteria. Mega-sena acumulada: 20 milhões de horas para desfrutar livre de brevidades. Apostarei um minuto, dez horas? Sonhando com a possibilidade de ser milionário do tempo, de largar a pobreza das horas contadas, dos minutos esbaforidos, deleito-me com cenas de azuis sem fim, de lua cheia quase eterna.
Anjos usam relógio? Sem encargos, não necessitam acompanhar as horas. É sempre feriado. O ócio celestial soa tedioso. E o diabo, conta o tempo? Sei lá! Por que faria isso? Quem sabe para atazanar seus hóspedes, importunando-os com a lembrança do quanto já sofreram e o restante a expiar.
A serpente de automóveis vai rastejando lentamente para o Alto da XV. Compelido a interromper os delírios, me lembro da manhã azul, distante do ocaso como se fosse outra vida. Ouço a previsão do tempo desejando mais azul. Não. O cinza predominará com poucas aparições do sol entre nuvens.
A privação de prazeres singelos como o deleite de um dia de céu oceânico ocorre em nome da seriedade da vida adulta, de ater-se aos compromissos, deixando para depois o que existe agora, num futuro que pode ser apenas talvez.
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