O jovem Edward Snowden era empregado nas franjas inferiores do sistema de segurança dos Estados Unidos; estafeta qualificado, mas em posto que dá a oportunidade de testemunhar acontecimentos importantes. De um momento para o outro o subordinado raso, quase no nível de estagiário, resolve ser veraz e contar as coisas que viu. Ao abrir os arquivos, lançou o governo norte-americano às cordas do ringue, em posição defensiva, nitidamente constrangida.
Não é a primeira vez que uma pessoa isolada provoca terremoto político nos Estados Unidos. Os "papéis do Pentágono" vazados para a imprensa no começo dos anos 70 mostraram bastidores da guerra no Vietnã e ajudaram a consolidar o repúdio popular à ação americana no conflito. O "Garganta Profunda" delator cuja identidade se conheceu recentemente narrou ao jornal Washington Post a escuta e furto de documentos na sede do Partido Democrata, levando à renúncia do presidente Nixon, em 1974. Em 2010, o soldado Bradley Manning entregou ao Wikileaks (site especializado em apresentar informações que os governos tentam manter em segredo) 700 mil documentos classificados como secretos que versavam sobre a atuação americana nas guerras do Iraque e do Afeganistão. Manning foi preso sob a acusação de colaborar com o inimigo e está sendo julgado por um tribunal militar.
As línguas cínicas dizem: "viu, até o governo americano faz escuta clandestina!" Cinicamente, têm a pretensão de, ao igualar por baixo, justificar a conduta de ditaduras que bisbilhotam a vida dos indivíduos. Não, a invasão da privacidade não é justa apenas porque todos fazem. Se a disseminação de uma conduta fosse o critério de aprovação moral, quanto mais homicídios houvesse, menos reprováveis seriam, porque todo mundo faz!
Evento semelhante na Coreia do Norte ou em Cuba não causaria nenhum constrangimento ao governo, porque na pauta de valores morais que balizam a conduta não consta o respeito à individualidade. Interceptar as comunicações, fazer escutas ambientais, conhecer a alcova são considerados atos típicos de governar. Nas democracias, ao contrário, qualquer prática dessas é considerada imoral e alvo de repúdio, podendo resultar em redução da legitimidade dos agentes políticos, com consequências eleitorais.
É simples: Snowden e predecessores conseguiram fazer barulho na mídia norte-americana e mundial porque delataram imoralidades do governo de uma democracia. Se tivessem provas de conduta idêntica de uma ditadura, não obteriam espaço na mídia local e, caso o assunto viesse à tona em jornais estrangeiros, os dirigentes nem corariam de vergonha.
Assistimos bestializados às revelações de Snowden, sem atinar para a relevância do debate sobre os limites do governo no cumprimento do dever de garantir a segurança do país e, ao mesmo tempo, prestigiar os valores da liberdade individual. Nunca pensamos seriamente no assunto porque somos irrelevantes na política internacional e nem sequer construimos as nossas infovias livres de interceptação americana, chinesa, russa.
Em algum momento será imperioso decidir se condutas como a de Snowden são de traidores ou heróis. De minha parte, penso que deveríamos oferecer-lhe asilo político porque a veracidade merece proteção.
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