Querido anjo da guarda, permita-me tratá-lo por você. Há tantos anos seguimos juntos, desde os tempos da Alameda Barão de Limeira, que podemos dispensar as formalidades, não?
Nos últimos 44 anos, eu lhe dei muito trabalho, especialmente na longa noite escura em que duvidei de sua existência. Mesmo diante do meu ateísmo, você não arredou pé. Acho até que trabalhou dobrado na fase em que como diria a canção de Noel Rosa meu lar era um botequim. Ou uma reunião sindical.
Você estava lá nas festas da universidade; na República da Rua Humaitá 143; nas noitadas do Valentino, do Beco e do Clube da Esquina; nos churrascos intermináveis; nos bares secretos; nas assembleias políticas. Aguentou jornada dupla, às vezes tripla, sem direito a descanso dominical. Dormia tarde e acordava cedo. E eu passei todo esse tempo, quase meia vida, sem lhe dirigir uma só palavra de agradecimento. Ingrato é pouco para definir o que eu fui. Egoísta miserável seria mais adequado.
Na semana passada, você me salvou a vida mais uma vez. Quase fui atropelado. O motorista não teve culpa: eu é que resolvi atravessar a Rua Goiás falando ao celular. Tive de dar um pulo para não ser atingido. Quando cheguei à calçada, com o coração saindo pela boca feito aquele personagem da antiga novela Saramandaia, um rapaz que estava passando pelo local disse: "Pelo menos agora você tem assunto para a próxima crônica!"
E aqui estou, amigo anjo, falando com você, e agradecendo pelo empurrão providencial. Não que tenha sido uma operação difícil para um guardião experiente. Difícil foi evitar um incêndio na sede do DCE inteiramente decorada com papel kraft amassado, numa época em que quase todos fumavam, em 1991. Para quem nos salvou daquela, impedir um atropelamentozinho na esquina é mole; você faz isso com um pé nas costas.
No entanto, o verdadeiro objetivo desta carta, meu caro anjo, é dispensar os seus serviços. Não frequento mais botequins (só vou à Cantina do Nonoca de vez em quando, mas a Rosângela controla meus horários). Não me convidam mais para festas universitárias. Não participo mais de passeatas, nem de greves, nem de protestos. Está na hora de você trocar de serviço.
Peço que agora você trabalhe em conjunto com o anjo da guarda do meu filho Pedro. Sabe como é, ele tem 4 anos, precisa de atenção constante. Você poderia cobrir as folgas do anjo do Pedro, ou usar a sua longa experiência para lhe transmitir algumas orientações. A partir de agora, vou me virar sozinho. Vá cuidar do Pedro. E me deixe comigo, que eu tiro de letra. Obrigado, irmão.
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