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Paulo Briguet

Homem ao chão

Há mais de vinte anos eu não jogava uma partida de futebol. Resolvi "entrar em campo", sem nenhum preparo, neste final de semana, durante um piquenique com amigos, com a intenção de me exibir para a minha mulher Rosângela e o meu filhinho Pedro, que estavam assistindo a tudo.

O resultado foi patético. Em menos de cinco minutos, comecei a sentir tonturas, dificuldade para respirar e taquicardia. Caí sozinho no gramado do Monumento à Bíblia. Em toda minha vida, nunca cheguei tão perto de um desmaio. Esclarecimento: só havia bebido água.

Rapidamente todos me acudiram. Quando o amigo Diego perguntou se eu estava bem, lembrei-me de uma crônica de Décio de Almeida Prado, em que o autor descreve a queda de um jogador veterano no Pacaembu. Se não me engano, a frase antológica é mais ou menos assim: "Caiu um atleta, levantou-se um senhor". A diferença é que eu nunca fui atleta...

No gramado em frente ao Pacaembu, há mais de trinta e cinco anos, salvei-me por pouco de um acidente de carro, graças a uns pedaços de peixe que estavam espalhados no chão. Incomodado pelo mau cheiro, sugeri à minha irmã que fôssemos brincar de bola um pouco mais adiante. Menos de cinco minutos depois, o motorista de um Fusca perdeu a direção; o carro veio capotando pelo gramado e parou exatamente no lugar onde estávamos antes.

Um dia antes da minha fracassada tentativa de voltar ao mundo do futebol, um professor mencionou a origem comum das palavras humilhação, humildade e humano. Todas vêm de húmus, a terra que nos moldou e futuramente nos receberá de volta. Minha queda serviu para mostrar que a humildade – a humildade verdadeira, não a afetação de modéstia –, mais até mesmo do que a coragem, está na base de todas as outras virtudes.

A vertigem da queda não foi um simples acaso. Às vezes é preciso cair no chão e sentir o gosto do húmus para lembrar que somos apenas um sopro. Entre os amigos que me acudiam, havia também o vulto de um jovem desconhecido – um rapaz de 20 e poucos anos estranhamente parecido comigo. Rosângela veio me oferecer um copo d’água, e o moço desapareceu.

Vinte anos atrás, quando não deixei aquele rapaz nascer, eu nem imaginava que um dia poderia ser o marido da Rosângela e o pai do Pedro. Acreditava que a terra, e somente ela, era o ponto final de toda a existência. Hoje eu sei que o sopro persistirá depois que o corpo cair definitivamente. Hoje eu também sei que o acontecimento central da minha vida foi aquela tarde no gramado do Pacaembu, quando os peixes me salvaram. Perdão, filho.

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