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Paulo Briguet

O Evangelho dos Órfãos

Meu amigo Onofre perdeu um filho há nove anos em acidente de moto. Meu amigo José perdeu um filho há seis anos em acidente de carro. Meus amigos Nelson e Dilza perderam um filho há oito anos em acidente de carro. Minha amiga Ana Paula perdeu os dois filhos há 13 anos em um atropelamento. Meus amigos Mauro e Selma perderam a filha há dois anos, vitimada por um tiro.

Todos os dias, sem exceção, eu penso neles: nos filhos que se foram e nos pais que ficaram. Todos os dias eu penso nessa terrível inversão da ordem natural das coisas. Depois da morte do filho, meu amigo Onofre e sua esposa, Carmem, passaram a frequentar um grupo cristão de pais que sentem a mesma dor. O grupo se denomina Evangelho das Mães. Segundo Onofre, os pais de filhos que partiram são como pássaros de asas quebradas. A asa pode até voltar a funcionar, permitindo o voo, mas uma sombra de dor sempre persistirá. E nas mudanças de clima a velha ferida volta a doer com intensidade.

Às vezes, no meio da noite, penso nos amigos pássaros. Levanto-me silenciosamente, para não acordar a Rosângela, vou até o quarto do Pedro e por alguns instantes fico observando a tranquilidade do seu sono, o ritmo da sua respiração, a suavidade de seus traços. Quantos pais não dariam tudo para poder reviver esse momento! Então eu agradeço.

Esperando na fila do correio, abri uma antologia poética ao acaso. Era a página do Cântico do Calvário, de Fagundes Varela, cuja epígrafe diz: "À memória do meu Filho morto a 11 de dezembro de 1863". Foi quando percebi a data: 11 de dezembro. O filho do poeta havia morrido exatamente 150 anos atrás. "Eras na vida a pomba predileta / Que sobre um mar de angústias conduzia / O ramo da esperança..."

Outro dia o Pedro me perguntou o que era um órfão. Eu expliquei a ele que órfão é a criança que não tem papai nem mamãe. Disse também que havia muitos órfãos no mundo, e que eles vivem em lugares chamados de orfanatos. Só não disse a ele que existe no mundo outro tipo de órfão. Existe o órfão José, que no meio da noite escreveu o nome e o sobrenome do filho, seguido de um ponto de exclamação, para expressar a dor que sentia naquele momento. Existem os órfãos Onofre, Carmem, Nelson, Dilza, Ana Paula, Mauro, Selma, Vivian... Há 2 mil anos, existiu a órfã Maria – e podemos ver a força de sua dor na Pietà.

A palavra Evangelho quer dizer boa notícia. Para todos os órfãos do mundo, há uma esperança. Sim, meus amigos de asas feridas: um dia, todos eles vão ressurgir, trazendo o ramo da vida nova.

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