O amigo de um amigo está fabricando uma cachaça especial: "Saudade Pura". Gostei tanto do nome que resolvi usá-lo no título desta crônica. Até porque a saudade é a minha cachaça.
Vai chegando o Natal e eu vou ficando mais e mais nostálgico. Os gregos diziam que a nostalgia é a dor das velhas feridas. Os romanos, seus alunos e senhores, reuniam-se ao fim da vida nas casas de campo para contar as histórias de suas cicatrizes de batalha. Mas talvez os romanos não soubessem que nem só as feridas deixam cicatrizes; as alegrias também deixam.
As cicatrizes da minha alegria doem muito nesta época do ano. O poeta Maiakovski dizia que nele a anatomia ficou louca: "Sou todo coração". Pois a cada Natal eu tenho certeza de que a minha alma é uma só cicatriz, constituída por minhas alegrias e pecados, minhas feridas e memórias, meus crimes e compaixões.
A saudade que eu sinto de meu pai, de minha mãe, da Vó Maria, do Vô Briguet e de tantas outras almas queridas tem uma tal intensidade que simplesmente não pode ser em vão. Acredito que more aí um dos mais claros indícios da existência de Deus. A dor tem um sentido e, no caso da saudade, acabamos nos afeiçoando à dor, como se ela fosse a nossa irmã mais velha, um vestígio da Criação.
Estudando a vida do padre José Kentenich, prisioneiro de Dachau nos anos 40, assombrei-me com a sua profecia de que os campos de concentração eram apenas o prenúncio da vida futura, "terra de loucos e pagãos". O susto inicial, porém, deu lugar à plena convicção de que o padre estava certo. Então eu li a notícia de que na França um grupo de ativistas incendiou um presépio em nome do "Estado laico". O mundo está se tornando um campo de loucos e pagãos.
Mas é nesse mundo em que meu filho vai viver, então preciso construir pequenos céus para ele. Aqui em casa já montamos o nosso presépio. Vocês sabem que o primeiro presépio foi feito por São Francisco de Assis? Curiosamente, ele tinha a capacidade de caminhar em meio às chamas sem se queimar.
Quando a Rosângela e o Pedro montaram o presépio e a árvore, pensei mais uma vez em minha mãe. Nesta época do ano, Aracy parece estar ao nosso lado. Dias depois de montar o presépio, o Pedro assistiu a um desenho maluco na tevê e teve pesadelos à noite. A mãe foi dormir ao lado dele e os sonhos ruins passaram. Então mais uma vez eu pensei em minha mãe, meu pai, meus avós, cuja mera presença servia para espantar todos os fantasmas. Hoje eles são esta cicatriz que eu chamo de alma. Dói, mas me reconforta. A cada dia, descubro que a cura da dor está na dor da cura. Feliz Natal para você que também tem saudade pura.
Dê sua opinião
O que você achou da coluna de hoje? Deixe seu comentário e participe do debate.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro
A gestão pública, um pouco menos engessada
Deixe sua opinião