Entrevistei uma senhora que canta há 77 anos no coro da Catedral de Londrina. Vocês sete leram certo: Dona Beth tem 87 anos e canta desde os 10. Ela ficou meio triste quando soube que não pode cantar na universidade, onde existe uma réplica da igreja de sua infância. Existe uma norma interna proibindo atividades religiosas no câmpus.
Essa proibição me faz de novo lembrar Nowa Huta, na Polônia. Nos anos 50, o governo comunista quis construir uma cidade-modelo para os proletários. Uma cidade sem Deus. Só se esqueceram de combinar com os proletários católicos. Na falta de uma igreja, estes ergueram uma cruz de madeira que vigiavam noite e dia, para que os comunistas não a retirassem. A cruz durou mais que o regime.
Será que eles não aprenderam? De nada adianta proibir Deus. De nada adianta banir a cruz, vetar a missa ou dizer que o coral religioso não pode cantar na igrejinha do câmpus. As pessoas continuarão acreditando em Deus, rezando e cantando com fé, esperança e amor.
A crucificação é símbolo do maior infortúnio. Ao mesmo tempo, ela revela aquilo que os homens mais possuem em comum: na dor nos irmanamos e reconhecemos
A cruz aparecerá quando menos se espera. A passagem mais importante do belo e vasto romance O homem que amava os cachorros, de Leonardo Padura, é aquela em que o narrador, ateu e desesperado, encontra na areia da praia uma cruz tosca de madeira, que leva para casa e passa a chamar de “a cruz do naufrágio”. Naquele objeto – provavelmente advindo de um naufrágio de exilados cubanos – condensa-se todo o drama e a angústia dos personagens do livro.
A crucificação é símbolo do maior infortúnio. Ao mesmo tempo, ela revela aquilo que os homens mais possuem em comum: na dor nos irmanamos e reconhecemos. Por isso, tenho procurado ver em cada indivíduo – mesmo naqueles que me atacam, perseguem ou repugnam – aquilo que me torna exatamente igual a ele. Todo homem é uma cruz.
É uma cruz a cantora que não pode cantar na igreja de sua infância, é uma cruz a autoridade que a proíbe de fazê-lo. É uma cruz o meu amigo motorista que perdeu o filho e não entende por quê, mas mesmo assim é capaz de sorrir. É uma cruz a criança vítima do aborto. Valfrido, o mendigo que vasculha o lixo aqui perto do meu trabalho, ele também é uma cruz, com suas mãos trêmulas. A moça que não tem dinheiro para comprar um presente no aniversário da filha, eis que ela é uma cruz, e é uma cruz o jovem deitado ao sol no Calçadão, em meio aos passantes. Por mais que um homem ande com pressa e tenha compromissos inadiáveis, não pode fugir daquilo que é.