Nas brechas da vociferação, a voz ponderada. Enquanto a maioria digladia-se na arena com vassouras, esfregões e baldes de roupa suja, alguém preocupa-se com o dia seguinte.
No grande circo federal poucos se dão conta de que os holofotes já começam a cegar, os malabaristas capengam e os palhaços estão rotos. Pior: ninguém se dá conta de que as feras estão famintas.
Neste banquete de canibais em que se converteu a cena política, o senador Jefferson Peres (PDT-AM) teve a ousadia de oferecer, sem grandes alardes, a idéia de uma concertação política. Com dois pequenos artigos ("Globo, 19/7 e "Folha", 21/7), ofereceu uma saída serena capaz de interpor-se à exaltação e desfazer a dinâmica do apocalipse.
Jefferson, o decente, começa pedindo desculpas pelo uso do espanholismo, concertación. Não precisava: embora ainda não incorporada ao português falado no Brasil, a palavra e a noção de concertação social e política estão há mais de 15 anos em uso em Portugal ("Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea", da Academia de Ciências de Lisboa).
A Espanha, com o famoso Pacto de Moncloa (depois da ruína do franquismo), e o Chile, através do acerto entre a Democracia-Cristã e os Socialistas (em seguida ao fim da ditadura de Pinochet), são exemplos de plataformas de consenso capazes de acomodar as principais forças políticas de nações recém-saídas de regimes de exceção em torno da idéia de estabilidade institucional.
Já tivemos um concertamento em 1961 (em seguida à renúncia de Jânio Quadros) quando os partidos civis e o partido militar, graças à genialidade de Tancredo Neves, contornaram o perigo de uma guerra civil com a solução de entregar a Presidência da República num regime parlamentar a João Goulart.
Dizem os manuais de gerenciamento de crises que a boa solução é aquela que resolve pelo menos dois problemas: o parlamentarismo trazia uma reforma política radical que o Estado brasileiro reclamava desde o fim do Império e, junto com ela, oferecia a manutenção da linha sucessória prevista pela Constituição.
Esta solução foi torpedeada logo depois quando o carbonário Leonel Brizola percebeu que o sucesso da fórmula parlamentarista enterraria seu projeto voluntarista de suceder ao cunhado Jango. O senador Jefferson Peres não citou esta brasileiríssima concertação certamente para não ser obrigado a lembrar os estragos que a desmedida ambição de Brizola, o fundador do seu partido, causou ao país.
A concertação só pode ser empreendida por políticos que tenham o estofo de estadistas, líderes capazes de ultrapassar os interesses pessoais e as limitações partidárias em cruzadas cívicas e morais. Não era o caso de Brizola, não era o caso de Darcy Ribeiro (principal conselheiro de Jango), e não parece ser o caso dos aparelhistas do PT (alguns deles designados abertamente como "camarilha").
A frase final do pedido de desfiliação do PT feito por Sílvio Pereira na sexta-feira contra as "forças conservadoras que se aproveitam de nossas fragilidades" é exemplo da distância em que se encontram os ex-aparatchiks do PT (e são muitos!) da idéia de salvação nacional.
Jefferson Peres tem os atributos para lançar a idéia da concertação mas, infelizmente, não tem um partido capaz de sustentar um movimento de grandes proporções capaz de preservar o Estado enquanto os diferentes poderes são depurados da degradação. O ministro Márcio Thomas Bastos, graças à função (a pasta da Justiça antes de 1964, sempre foi a pasta política), graças ao respeito que goza do presidente Lula e, sobretudo, graças à sua natureza e/ou formação, já deu alguns passos discretos na direção de um entendimento.
A discrição, no caso, nada tem a ver com escamoteação. Um acordo suprapartidário neste momento não pode, sob hipótese alguma, sugerir um abrandamento das investigações ou de punições. A concertação pretende justamente garantir a governabilidade depois das numerosas cassações, depurações administrativas e reformas da máquina governamental. A governabilidade que se pretende com a concertação não é a mesma que o governo aconselhado pelo cínico Sarney persegue de forma tão desastrada há quase um ano.
A concertação pretende um conserto de emergência. Para evitar lapsos, rupturas. Para evitar traumas.
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