O diagnóstico é grave, amenizá-lo com eufemismos só piora a situação. A crise política está resvalando com alguma velocidade para um confronto entre instituições e poderes. Um incremento no ritmo ou na dimensão dos contenciosos e entraremos numa escalada difícil de controlar.
A decisão do ministro Eros Grau de anular a cassação do deputado José Dirceu aprovada pela Comissão de Ética da Câmara e o despacho do ministro Marco Aurélio Melo para que se devolva o mandato de senador a João Capiberibe tirado pelo TSE e, em seguida pelo Senado, configuram um clima de perigosos conflitos nos alicerces da instituição republicana.
Não se trata de mera desarmonia, nem de controvérsias teóricas. O sistema democrático alimenta-se e sobrevive graças às discórdias e ao dissenso: os três poderes formais acrescidos do Ministério Público e do poder informal da imprensa devem ter, obrigatoriamente, visões diferenciadas. E devem manifestá-las publicamente através de votos, sentenças e despachos.
Perigoso é o estágio da anulação de soberanias. Os fundadores da república americana e os filósofos iluministas que os inspiraram agarraram-se ao mecanismo de checks and balances, o permanente equilíbrio entre poderes autônomos, como solução dinâmica e justa para desativar discórdias institucionais. O que acontece agora com a encarniçada proteção ao deputado José Dirceu na suprema corte indica uma clara invasão de territórios.
O Supremo Tribunal Federal exorbitou ostensivamente na mais recente manifestação do ministro Grau. Perdeu pudores e deixou clara sua disposição de interferir nos procedimentos internos do Legislativo. Outras decisões recentes dos ministros Nelson Jobim e do mesmo Eros Grau, o primeiro visivelmente interessado em participar da disputa presidencial em 2006 e o segundo, francamente empenhado na sobrevivência política do ex-ministro José Dirceu (responsável direto por sua indicação), revelam uma preocupante disposição da corte suprema em entrar na liça política.
A última das três manifestações do ministro Eros Grau anulou o parecer da Comissão de Ética que recomendava a cassação do deputado José Dirceu e mesmo para os não-bacharéis neste país de bacharéis é um primor em matéria de preciosismo forense. O relator Júlio Delgado (PSB-MG) já havia atendido à firula anterior do Meritíssimo e extirpado do seu relatório as partes sigilosas oriundas da CPI dos Correios. Não contente, Eros Grau exigiu que o novo relatório fosse lido em voz alta na Comissão de Ética. Desconsiderou um relatório formal aprovado por uma esmagadora maioria (13 a 1) de um órgão do Legislativo sobre o qual, o STF não pode ter qualquer ingerência.
Quem julgará a onipotência do magistrado o Conselho Nacional de Justiça, recentemente instalado, o chefe do Poder Legislativo, senador Renan Calheiros que também não esconde sua arcaica devoção ao poder central? E a sociedade brasileira, como sossegá-la diante das parcialidades que desfilam no Olimpo togado?
A descabida intromissão do Judiciário em áreas que não lhe competem não se limita ao piedoso esforço para dar sobrevida ao deputado José Dirceu. Calou fundo o voto comiserado do ministro Carlos Velloso ao acolher o habeas-corpus dos Maluf e, em seguida, ao deixar-se fotografar cumprimentando alegremente o advogado vitorioso. Fala-se tanto em decoro parlamentar, mas como é que o cidadão brasileiro poderia classificar as duas ações senão como quebra de decoro numa instituição baseada na majestade dos ritos?
Há quase um semestre o país está rachado em torno da culpa ou inocência do deputado José Dirceu. Ninguém se incomodou com o clamoroso erro cometido por outra instância judicial máxima, o TSE, agravado pelo presidente da Câmara Alta, Renan Calheiros, ao retirar o mandato do senador João Capiberibe (PSB-AM) porque teria comprado dois votos por 26 reais cada um.
Na última quarta-feira, o Senado foi palco de uma cena inédita: senadores de todos os partidos, oposição e situação, apelaram ao presidente Calheiros para não consumar a decisão do TSE. Renan Calheiros, o comandante do "sim" no referendo do domingo passado, foi inflexível, disse "não" aos pares. Renan é do PMDB governista, quem articulou a liquidação de Capiberibe foi o seu adversário político no Amapá, José Sarney, vice-rei do Brasil, também do PMDB chapa-branca e quem substituiu o senador punido é da mesma facção.
O despacho do ministro Marco Aurélio Melo ao determinar que o ex-senador Capiberibe recupere o seu mandato para exercer o seu direito de defesa transfere e amplia o conflito institucional. O Supremo Tribunal Federal invalida e desqualifica uma decisão do Tribunal Superior Eleitoral implementada pelo chefe do Legislativo. As implicações deste despacho não podem ser minimizadas.
Ficou claro que a guerrilha partidária ultrapassou as salas das comissões parlamentares e os plenários do Legislativo. Como já se esperava, a maneira tíbia com que a suprema magistratura vem administrando a crise política permitiu a contaminação dos ambientes vizinhos. Só favorece a sua transformação numa crise institucional.
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