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Toda memória é uma ficção.
(Autor desconhecido)
Estou em casa sozinho. Procuro algo para ler, ver ou escutar. Não consigo. Falta-me a concentração para leitura, os filmes me aborrecem, nada do que ouço me agrada.
Lembro-me de meu avô.
Gebran Sabbag, nascido em 1932, morto em 2015. "Mortes: Pianista ícone do jazz curitibano", noticiou o jornal em seu obituário.
É verdade que um obituário é uma homenagem. Mas é estranho um homem fazer notícia somente em sua morte. Um homem que nasce, vive, se casa, tem filhos, netos e bisnetos. E produz. No caso do vô, produz música, que é uma coisa com chance de perdurar pela eternidade.
Não é verdade que o vô foi notícia só quando morreu. Mas a internet é coisa recente e isso é quase tudo que se encontra nela a respeito dele.
Teria sido o vô notícia em seus tempos? Talvez. Ele foi figurinha fácil em um grupo de pessoas relativamente célebres - se você considerar célebres os artistas de uma cidade como Curitiba nos anos 50. O vô tocou no rádio, em casamentos e cabarés. Formou conjunto - Los Miserables del Ritmo -, participou de orquestras.
Fez parte da banda de apoio do crooner americano Johnny Mathis quando ele veio se apresentar no Guairão.
O que devo escutar hoje, vô?
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Entro na sala da casa dos meus avós, no Ahú. Esta sala tem dois pianos. Tem também um gravador de rolo na estante.
O vô está emocionado em frente ao gravador. Tenta colocar no ponto uma fita no aparelho.
"Ouça isso", diz o vô, com os olhos marejados.
(Você já viu árabe chorar? Não sei quanto os árabes do Oriente Médio são emotivos, mas pense em árabes brasileiros)
Ele acerta o ponto da fita. O que vou ouvir?, tento antecipar. Será Art Tatum, Dizzy Gillespie, Toots Thielemans?
O alto-falante começa a emitir um ruído. Ouço a voz de minha avó dizendo "vai!". E então minha prima mais nova, em seus 5 anos, começa a cantar, com a vozinha infantil: "Terezinha... de Jesus... De uma queda, foi ao chão...".
E o vô se debulha em lágrimas.
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No funeral do meu avô muitos dos seus amigos compareceram e deram a mim seus pêsames. Algo protocolar, ainda que simpático. Eu era o neto mais velho. O "número 1", como gostava de ser chamado por ele. As três filhas mais velhas do Gebran são mulheres, então algo na sociedade patriarcal indicava que eu deveria ser procurado.
Cumprimentei a todos solenemente, segurei a alça do caixão à frente. No enterro era fácil me identificar.
Mas havia muito tempo que eu não conversava direito com meu avô.
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Depois da morte da minha avó, em 2002, a casa dos meus avós virou uma bagunça. Aos 75 anos, o vô não era exatamente a melhor pessoa para cuidar de si mesmo. Tinha suas manias e sua cabeça dura (você já tentou discutir com um árabe?). Um dia uma das primas foi visitá-lo e perguntou se ele já tinha jantado. "Sim", respondeu. O que tinha jantado? "Água de batata. É bom e nutritivo".
Visitar o vô era difícil. Por vê-lo daquele jeito e pelas histórias intermináveis que ele se punha a contar ou recordar. Histórias de beduínos no deserto ou de guerras que não sei bem se foram guerreadas.
Não vi o meu avô em seus últimos tempos de vida. A morte chegou antes da minha crise de consciência. Mas estava lá para receber as condolências.
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Diziam que o Gebran não era um bom professor de piano. Pudera, foi autodidata. Aprendeu a tocar ouvindo o rádio. Sabia ler partitura, mas não precisava. As melodias, os arranjos, viviam apenas em sua cabeça.
Quando encasquetei que queria aprender a tocar piano, minha mãe me matriculou numa escola de música do bairro.
Eu podia praticar nos pianos da casa do vô. Duas vezes por semanas lá estava, com o livro do método aberto, tentando martelar o teclado em alguma sequência harmônica.
"Pim-pom-pim-pom-pim-pom". Que método estranho. Os exercícios não eram melódicos. Eram feitos para treinar as mãos do jovem aprendiz, diferenciar bemóis e sustenidos, encontrar as teclas com facilidade.
Cada melodia era acompanhada de uma letra aleatória. "Pim-pom-pim-pom". "E-os-pei-xes-jo-ga-vam-fu-te-bol". O quê? "Os-pei-xes-jo-ga-vam-fu-te-bol". Os peixes jogavam futebol?, perguntou o vô. "Pim-pom-pim-pom-pim-pom. Os-pei-xes-jo-ga-vam-fu-te-bol".
Ele exclamou um palavrão em árabe e saiu.
Foi minha última lição no piano.
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Não tenho muitos discos de jazz. Ouvi bastante Chet Baker quando era adolescente, pois adolescente estranho. Conheço a maioria dos standarts; os clássicos nas versões de Oscar Peterson, Dave Brubeck, Miles Davis - esse ouvi mais: 'Round About Midnight, Miles Ahead, Porgy and Bess, A Kind of Blue, Bitches Brew foram discos que comprei com meu próprio dinheiro.
"Você não gosta de jazz de verdade", disse-me uma vez minha mãe. Ela tinha razão. Eu sempre gostei mais de rock, fazer o quê? Tanto que boa parte desses discos de jazz simplesmente desapareceu da minha coleção - imputo a culpa a tantas mudanças que fiz de endereço, nunca ao descaso.
Não tenho nada aqui que o vô me recomendaria. Mas o que ele recomendaria?
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Aos 40 anos eu entenderia se meu vô tivesse morrido ressentido comigo. De verdade. Sei que é uma coisa que ninguém gosta de pensar, mas seria lógico. Eu, o neto número 1, o abandonei nos seus últimos anos de vida. Nunca perguntei sobre sua namorada. Fiquei sabendo do disco que ele gravou com meu tio depois que estava pronto. A mesma coisa do documentário em que ele é um dos personagens principais. Das vezes em que ele se acidentou em casa e terminou no hospital, tudo que fiz foi uma visita protocolar em que repetia "tem que se cuidar, vô. Tem que se cuidar".
Sei que é fácil dizer que quem ama, perdoa. Mas nem sempre é assim.
Sinto que preciso me reconciliar com meu avô. Mas como se reconciliar com os mortos?
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Queria entender o que o vô faz para tocar as músicas do seu jeito. Ele é incapaz de reproduzir as grandes melodias da mesma maneira como foram gravadas pelos intérpretes originais. Escuto pela primeira vez “Dindi” em um disco do Tom Jobim e penso “de onde conheço essa música?”. Mais tarde peço para o vô tocar para mim. Era aquilo. “Dindi” por Gebran Sabbag não era a “Dindi” do Tom.
Você até pode argumentar que essa é a memória afetiva falando mais alto. Mas apenas se você nunca escutou o Gebran tocando “Dindi”.
A adoração que sinto pela música é proporcional ao mito da genialidade musical do meu avô. Nunca me aventurei a tocar qualquer instrumento ou aprender teoria musical porque jamais iria me confrontar com o que era a música do meu avô.
Está escutando, vô? Eu lhe admiro muito. Espero que possa me perdoar.
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Estou até agora olhando para minha estante e já sei que não vou ouvir nada do que o vô recomendaria. Eu poderia sacar o celular e escolher alguma do Nat King Cole para agradá-lo. Desculpe, mas não será possível, vô. Para a gente se entender agora e para sempre o senhor precisa saber. Essa não é a música que eu mais gosto.
A música que eu mais queria ouvir era a sua.
* Ricardo Sabbag Zipperer é jornalista da Gazeta do Povo em Curitiba