Tragédia. Tarso Genro foi o primeiro a servir-se desta palavra, ainda em junho, para definir o que estava acontecendo com o PT. O ex-ministro da Educação viu nela o sentido de catástrofe, desastre, infortúnio. Sempre na esfera política, plural. E, por extensão, histórica. Não teve tempo para verificar que a tragoidia grega significa, literalmente, o "canto do bode", lamúria religiosa entoada antes do sacrifício de um bode nas festas de Baco.

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Oferenda aos deuses para aplacar suas iras diante da falência da condição humana, tragédia tem a ver com o ritual do sacrifício, expiação, submissão aos desígnios superiores. Assim a viu Shakespeare com suas tragédias políticas encabeçadas por "Júlio César", sublime e dolorosa linha reta em direção às punhaladas no Senado.

A cassação do deputado José Dirceu traz a noção de tragédia para o nível pessoal, humano. Na aparência, o ex-ministro e ex-deputado está ótimo, firme no comando da sua vida: sabe exatamente o que quer, diz precisamente o que deve dizer, não comete impropriedades, não se deixa levar por qualquer emoção. Traçou uma estratégia, montou seu cronograma, faz sua ginástica diária, mantém a postura altiva, a vida regrada. Em nenhuma das aparições públicas, revela marcas das bengaladas com que os fados o castigaram por ousar ser dono do seu destino.

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Para os menos avisados, era arrogante. Nada disso: Dirceu apenas ostentava a segurança daqueles que se sentem privilegiados pelos deuses. Certo de que estava certo, confundiu acertos e desacertos e, como diria Orestes Barbosa, pisou nas estrelas distraído. Seguro, sereno, imbatível e, miseravelmente, vulnerável.

Tragédias gregas estão envoltas em clima nobre, elevado, combinação do grandioso com o funesto. Nas tragédias modernas, igualmente patéticas, os personagens podem exibir-se engravatados (ou com jogging) e as tramas desenrolam-se em cenários corriqueiros e amenos, como num anúncio de loja de eletrodomésticos.

O fim da votação na Câmara, à meia-noite da última quarta, não foi o último ato do fascinante percurso de José Dirceu e seus heterônimos. Na melhor das hipóteses pode ser o fim do primeiro ato. Os seguintes devem desenrolar-se ao longo dos próximos anos. Certamente usará o mesmo e mitológico nome para repetir o mesmo número – esta pode ser a sua perdição.

Ele mesmo a prenuncia ao prometer que vai começar a luta pela anistia. O bode sacrificado levanta-se para dizer que não se conforma com a degola. Sempre soube que se não fosse ele o castigado, o cutelo cairia no pescoço do presidente Lula. Esperneou e lutou certo de que não poderia ultrapassar um determinado ponto. Na hora aprazada, resignou-se. Agora se revolta contra a expiação acertada entre aliados e inimigos.

Assegura que tem as mãos limpas, não se serviu da dinheirama que correu pelo valerioduto e quando proclama que não é corrupto não finge, está convencido da inocência. Sua tragédia está justamente na esfera semântica, distonia na percepção das malignidades do agente e do paciente. O corruptor no universo de Dirceu não é um infrator, ao contrário, um emissário do destino para tentar as almas frágeis, seduzir os seres menores que mordiscam migalhas.

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A tragédia dirceana alimenta-se numa sucessão de ilusões, uma delas no tocante à bravura. Desafiar os deuses não é necessariamente prova de grandeza moral. A pretensão à infalibilidade é um destes auto-enganos que não resiste à repetição. Sacudir a poeira e dar a volta por cima, como preconizou Paulo Vanzolini, costuma ser mais sensato.

Dirceu, porém, não abre mão de ser Dirceu. Sabe que até outubro de 2006 cada gesto, cada movimento e cada palavra que pronunciar, sobretudo para proclamar sua inocência, iniciará fatalmente uma nova pressão em cima do presidente Lula. Esqueceu que também neste caso a criatura não se equipara ao criador.

Esta é outra tragédia. Não propriamente de Dirceu, mas de todos nós.

Alberto Dines é jornalista.