Apesar de ter escolhido para seu governo o slogan “união e reconstrução”, Lula chega aos 100 dias de seu terceiro mandato sem entregar nem uma, nem outra. Esses quase três meses e meio de governo foram perdidos em factoides, discussões desnecessárias, a volta do tradicional “nós contra eles”, a tolerância com ministros encrencados, o simples desmonte de uma série de avanços do governo anterior, o fim da tal “frente ampla” costurada para levar Lula à vitória eleitoral e a ausência quase completa de projetos estruturantes para o país. Com esta quase paralisia em assuntos fundamentais para o país, resta a Lula usar o “modo palanque” em tempo integral para dar a impressão de que está governando. Mesmo descontando-se a comoção nacional causada pelos atos golpistas de 8 de janeiro, que monopolizaram – merecidamente, dada a sua gravidade – as atenções durante boa parte do primeiro mês de governo Lula, o saldo até agora não é nada positivo.
Diante de um parlamento com perfil ideológico bastante diferente do seu, qualquer governante de bom senso perceberia a necessidade de apostar em projetos que tivessem capacidade agregadora e de compartilhar o poder com as outras forças políticas que o ajudaram a se eleger. Mas não Lula: acreditando que os 51% de votos válidos recebidos eram uma carta branca de eleitores entusiasmados com seu nome, e não o resultado de uma rejeição ainda maior a seu adversário, Lula e o PT quiseram tudo: deixaram nacos de poder no primeiro escalão aos aliados da “frente ampla”, e não conseguiram nem mesmo garantir o apoio de legendas que, mesmo tendo sido da base aliada de Jair Bolsonaro, não pensariam duas vezes antes de abraçar o petista. Este é um dos fatores que explicam, por exemplo, a manutenção de Juscelino Filho no Ministério das Comunicações depois dos sucessivos escândalos que o envolvem, do uso de dinheiro do “orçamento secreto” para asfaltar estradas que passam por suas propriedades até o uso de um jato da Força Aérea, com pagamento de diárias, para que ele participasse de eventos ligados a seu hobby, a criação de cavalos.
Diante da quase paralisia em assuntos fundamentais para o país, resta a Lula usar o “modo palanque” em tempo integral para dar a impressão de que está governando
Sem a certeza de ter uma base parlamentar mínima para conseguir aprovar projetos, Lula não leva adiante absolutamente nada que dependa do Congresso para entrar em vigor. O único projeto relevante anunciado até agora ainda nem chegou formalmente ao Legislativo: o novo arcabouço fiscal que substituirá o teto de gastos. Um plano cheio de incertezas, que institui um “piso de gastos” pelo qual o governo poderá sempre elevar a despesa em termos reais ainda que a economia esteja mal, e com metas que, segundo muitos analistas, só poderão ser atingidas com forte elevação na carga tributária. As dúvidas a respeito da capacidade de este plano estabilizar ou reduzir a dívida pública como proporção do PIB e promover o ajuste fiscal de que o país precisa são muito pertinentes.
Sem projetos, resta a Lula comprar brigas com adversários reais ou inventados. A guerra contra o Banco Central e seu presidente, Roberto Campos Neto, já vem de antes da posse e ignora que a Selic é consequência, não causa, dos problemas econômicos do país, e que os juros sobem porque mais ninguém além do BC está atuando com seriedade para conter a inflação, já que Executivo e Legislativo se irmanaram pela elevação do gasto público. O setor produtivo continua a ser alvo da retórica governamental: “Empresário não ganha muito dinheiro porque ele trabalhou. Ele ganha muito dinheiro porque os trabalhadores dele trabalharam”, disse Lula, enquanto no campo o Movimento dos Sem-Terra volta a ganhar passe livre, a ponto de ser moralmente igualado aos donos das propriedades que ele invade, e o agronegócio é denunciado como desmatador por quem tem a missão institucional de promover as exportações brasileiras. Até mesmo a verdade dos fatos entrou na mira do governo, empenhado em criar órgãos para controlar o discurso, especialmente nas mídias sociais. E, em seu ódio pela Lava Jato, Lula não poupa nem a Polícia Federal e o Ministério da Justiça ao chamar de “armação” um plano do crime organizado descoberto pelos órgãos de investigação, tudo porque um dos alvos era o ex-juiz e hoje senador Sergio Moro.
Por fim, sobra apenas o “modo destruição” pelo qual decretos, portarias ministeriais e ativismo judicial são usados para desfazer o legado de seus antecessores. O Marco Legal do Saneamento está sendo desfigurado para que estatais ineficientes possam continuar prestando um serviço de baixa qualidade à população, longe da sonhada universalização da oferta de água tratada e rede de esgoto. As políticas pró-vida do Ministério da Saúde já foram todas revogadas, trazendo de volta as regulamentações feitas sob medida para deixar brechas ao aborto amplo, geral e irrestrito disfarçado de atendimento à violência sexual. Sem conseguir mudar no Congresso a Lei das Estatais, o petismo pede a seus satélites que recorram ao Supremo para derrubar os trechos inconvenientes, que previnem o aparelhamento político das empresas públicas.
Sem nenhum aceno à parcela da população que não endossou seu nome nas urnas, Lula só conseguiu até agora reconstruir o gigantismo na Esplanada dos Ministérios (com direito a um constrangedor evento de “inauguração” do letreiro que identifica o prédio do Ministério da Cultura), o aparelhamento das instituições e a insegurança a respeito dos rumos da economia. Esses 100 dias não deixam a menor perspectiva de uma necessária correção de rumos, apenas permitem prever que Lula não hesitará em fazer do Brasil terra arrasada em nome do seu “acerto de contas” com todos aqueles que ele acredita terem tramado para levá-lo à cadeia.
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