Depois dos atos de 8 de janeiro de 2023, em que as sedes dos três poderes foram invadidas e vandalizadas, o Judiciário em geral e o Supremo Tribunal Federal em particular tinham nas mãos uma chance de demonstrar compromisso com a democracia, após quatro anos de inquéritos abusivos em curso: bastaria que os processos fossem conduzidos estritamente dentro da lei, com cada envolvido sendo julgado no foro competente, denúncias embasadas em evidências que permitissem a individualização das condutas, e penas proporcionais no caso daqueles que fossem efetivamente culpados. Nada disso aconteceu, pelo contrário: o STF, especialmente por meio do ministro Alexandre de Moraes, dobrou a aposta, e o arbítrio atinge igualmente figuras conhecidas no meio político e completos anônimos.
Filipe Martins, que foi assessor especial da Presidência da República no governo de Jair Bolsonaro, foi preso em 8 de fevereiro deste ano, na Operação Tempus Veritatis, determinada por Moraes com base em supostos planos para um golpe de Estado que jamais chegou a ser colocado em prática. A alegação do ministro para decidir pela prisão preventiva de Martins era a possibilidade de que o ex-assessor viesse a fugir do país, pois já teria deixado o Brasil uma vez, na comitiva presidencial que foi a Orlando, na Flórida, às vésperas do fim do mandato de Bolsonaro e da posse de Lula.
Mesmo que Filipe Martins deixe a prisão em breve devido ao caráter avassalador da evidência que atesta sua permanência no Brasil, isso não apaga todos os abusos cometidos pelo STF nesses quatro meses
Ocorre, no entanto, que tal viagem nunca existiu. O nome de Martins chegou a constar da lista de passageiros do voo presidencial, mas ele não embarcou. A defesa do ex-assessor comprovou, com fotos e outras documentações – incluindo comprovantes de voos domésticos –, que Martins não saiu do país. Esse conjunto foi suficiente para a Procuradoria-Geral da República (PGR) pedir a soltura do ex-assessor no início de março deste ano, pedido este negado por Moraes sob a alegação de que ainda havia dúvidas sobre onde Martins estaria naquele fim de 2022 – dúvidas essas que só existiam na mente do ministro, evidentemente, e que em qualquer sistema jurídico decente atuariam em benefício, não em prejuízo, do réu ou investigado. A manutenção da prisão alimentou suspeitas de que Martins estaria sendo pressionado a fazer uma delação premiada, como fizera o tenente-coronel Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro.
Dias atrás, a Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA confirmou que Martins não viajou aos Estados Unidos naquela ocasião; sua última entrada no país ocorrera em setembro de 2022. Se Moraes ainda não recebeu oficialmente esta informação, há de recebê-la em breve, já que o ministro pediu ao Ministério da Justiça e Segurança Pública que entrasse em contato com as autoridades migratórias norte-americanas para obter os registros definitivos – o que, aliás, Moraes fez com enorme atraso, já que tal recomendação foi feita pela PGR em março. Enquanto isso, Martins segue preso e, mesmo que deixe a prisão em breve devido ao caráter avassalador da evidência que atesta sua permanência no país, isso não apaga todos os abusos cometidos nesses quatro meses.
Se o caso de Filipe Martins ganha notoriedade por se tratar de alguém que esteve nos círculos mais fechados do poder federal, o triste padrão estabelecido por Moraes se revela também nos casos de muitos brasileiros anônimos que tiveram suas vidas destruídas por estarem no local errado, na hora errada e na companhia errada. É o que ocorre com Alice Nascimento dos Santos, 49 anos, portadora de epilepsia desde os 21 e presa dentro do plenário do Senado em 8 de janeiro. Ela deixou o presídio feminino da Colmeia, em Brasília, dois meses depois; segundo a família, cumpriu fielmente as medidas cautelares por receio de voltar à prisão e reviver o inferno que passou lá – Alice perdeu 15 quilos e teve vários episódios de convulsão na prisão, de acordo com os familiares.
Mesmo sem nenhum elemento que implicasse Alice em atos golpistas ou de vandalismo, ela foi condenada a 14 anos de prisão, com cinco ministros divergindo do relator Moraes, mas recorreu da decisão, que por isso ainda não transitara em julgado. Nem esse fato, nem o cumprimento das medidas cautelares, no entanto, impediu que Alice voltasse para a Colmeia por ordem de Moraes em 6 de junho, sob a alegação de que ela poderia fugir, como outros réus e condenados do 8 de janeiro haviam feito. Em resumo, uma pessoa doente, que cumpriu fielmente as determinações da Justiça, estava tendo de pagar pelos atos de outros – mais uma vez. A família já sabe que ela passou vários dias sem tomar seus medicamentos, e não é exagero temer pela repetição do caso de Cleriston Pereira da Cunha, que morreu na Papuda, onde era mantido por Moraes apesar de todos os laudos médicos atestando o quadro de saúde frágil do preso e do pedido de soltura feito pelo Ministério Público.
Alice, Debora e muitos outros são exibidos como troféus de uma suposta “defesa da democracia”, vítimas de um arbítrio que, não satisfeito em atropelar a lei, ainda o faz impondo enorme sofrimento a doentes, mães e suas famílias
Igualmente aviltante é o caso da cabeleireira Debora Rodrigues dos Santos, presa em março de 2023. Contra ela pesa apenas o fato de ter sido fotografada escrevendo com batom a frase “perdeu, mané” – imortalizada pelo atual presidente do STF, Luís Roberto Barroso – na estátua da deusa Têmis que fica do lado de fora da sede do Supremo. De resto, todo o seu calvário segue a marca do abuso cometido contra tantas outras centenas de brasileiros. A denúncia contra Debora só foi oferecida depois de 14 meses, 12 vezes mais que o prazo legal, e durante todo esse tempo ela permaneceu – e permanece – presa, apesar de ter dois filhos pequenos, de 6 e 9 anos. As marcas de batom foram removidas facilmente, mas ela responderá pelo pacote completo que a PGR e Moraes atribuem a todos os que estiveram na Praça dos Três Poderes, incluindo associação criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
Moraes certamente sabe que, muito antes de Alice e Debora, o STF já tirou da cadeia réus e condenados – incluindo corruptos notórios – com problemas graves de saúde, determinando prisão domiciliar ou outras medidas cautelares. Sabe, também, que o mesmo já ocorreu com rés e condenadas mães de crianças pequenas; até habeas corpus coletivo para todas as presas grávidas, com bebês ou filhos de até 12 anos a corte suprema já concedeu. Mas nenhuma dessas garantias humanitárias é estendida aos presos do 8 de janeiro, exibidos como troféus de uma suposta “defesa da democracia”, presos políticos vítimas de um arbítrio que, não satisfeito em atropelar a lei para fazer justiçamento (e não justiça), ainda o faz impondo enorme sofrimento a doentes, mães e suas famílias. Os dicionários costumam se referir a isso como “sadismo”.