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Editorial

A alma do negócio

A manchete da Gazeta do Povo de alguns domingos atrás, "Uma guerra que nos diz respeito", se referia a um lugar muito próximo dos curitibanos: a Vila das Torres. Há quem ainda a chame de Vila Pinto. Ou de favela do Capanema, heranças de seu passado. Tudo bem. Qualquer que seja o nome, dispensa cartas geográficas. Sabe-se onde é. A vila nos é tão familiar como o Batel ou o Portão. Daí o título servir como luva – esse lugar de fato nos diz respeito. Mais do que isso. Nas entrelinhas, entende-se a Torres como uma espécie de "espaço-símbolo". Se a violência que ali se instalou for diluída, não nos faltará inteligência para estender essa experiência para os demais espaços degradados da capital e da região metropolitana.

Simples como isso? Devagar com o andor. A Vila das Torres, assim como o Parolin, se formou ao longo de 60 anos. Tudo o que ocorre nesses lugares tem raízes profundas, daí a dificuldade em tirar os nós da questão. Mais que o Parolin, inclusive, a vila deixou de ser uma favela para se converter num bairro pobre há duas décadas. Parece tempo o bastante para vencer os malefícios da informalidade. Mas a integração à vida urbana não correu sobre trilhos, como se esperava. A vila sofre de reincidência crônica. Padece de eterno retorno. Intercala períodos de paz e prosperidade – quando é celebrada como um lugar folclórico, perfeito para quermesses – com momentos de alta tensão. Nesses, pede-se que receba uma Unidade Paraná Seguro, a UPS. Que seja congelada pela Polícia Militar. Que se torne prioridade nas investigações da Polícia Civil. A vila vira nosso Morro do Alemão, nossa Maré.

Uma das opiniões recolhidas pela reportagem da Gazeta do Povo – dada pela arquiteta e urbanista Gislene de Fátima Pereira, da Universidade Federal do Paraná – resume um dos dilemas da vila. É lugar modelar na organização comunitária. A biblioteca, a praça, o clube de mães, a associação, o contraturno – para citar algumas iniciativas – são reconhecidos pelo movimento social e por toda e qualquer pessoa com o mínimo de sensibilidade. Mas não basta, o que é uma pena. A Vila das Torres soma homicídios, feridos e uma comunidade acuada.

O que diz Gislene é que a vila não é mais favela, mas as práticas de uma zona favelizada permanecem. Do que se pode deduzir que não faz sentido acreditar que a regularização fundiária, as ligações urbanas, a presença de equipamentos públicos – sem dúvida essenciais – possam por si só suplantar uma cultura. Os observadores da vila bem o sabem. Passado o auge dos atritos, a comunidade se acomoda às velhas práticas, o que inclui a tolerância com a ação dos traficantes.

Essa questão não dá contas, é verdade, do impasse da Vila das Torres. O alcance dessa realidade é mais global. O que se verifica ali tem a ver com o momento nacional de falência de um modelo de gestão do tráfico. Parece piada, mas não é. Não se deve esquecer que o tráfico é um tipo de "comércio varejista de drogas ilícitas". A boca de fumo funciona como um balcão. Como explica em suas falas o antropólogo carioca Luiz Eduardo Soares, referência em segurança pública, esse ramo ficou muito caro. Os interessados querem mudar o modelo. São empreendedores. Daí o campo de batalha em que se transformaram as favelas e bairros pobres. Não parece precipitado dizer que a Vila das Torres faz parte de tal cenário.

Para manter uma boca, o traficante precisa pagar os seus sócios, que são muitos, tornando o ramo de negócio cada vez mais pulverizado. Tem-se os "vapores", as "mulas". A tomada de territórios. Recrutamento de jovens. A feitura de redes. Tem de ganhar os vizinhos, comprar o silêncio de uns tantos. Conquistar a cumplicidade daqueles policiais que envergonham o enorme contingente de bons profissionais de segurança. É assunto delicado porque corremos o risco de generalizações mentirosas e injustas, mas não faz sentido desconsiderar o fato gravíssimo da proximidade. Há muita gente reivindicando sua parte no tráfico. Se entre eles estiver quem deveria zelar pela segurança, coloca-se uma faca no peito do Estado de Direito.

Do que se deduz que a guerra entre traficantes na Vila das Torres não pode ser entendida como rotina, sazonalidade, coisa pouca. Pode ser que ali tenha se desenhado o pior dos mundos, apesar da delicadeza de sua gente, das belas iniciativas que projetam a comunidade. A ordem pública precisa ser restabelecida, sem roubar a alma desse lugar que, como diz a manchete, nos diz respeito.

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