Em novembro deste ano, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro arquivou um inquérito contra a Secretaria de Estado de Educação (Seeduc) fluminense, motivado pela distribuição de uma cartilha de bioética a professores de Ensino Religioso da rede pública estadual. No fim de março, cerca de 100 docentes, participantes do X Fórum de Ensino Religioso, receberam a publicação Keys to Bioethics ("Chaves para a bioética"), mas, após denúncia do grupo de pesquisa da diversidade Ilè Obà Òyó, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), o MP exigiu, em abril, que a Seeduc recolhesse os exemplares distribuídos no evento.

CARREGANDO :)

Publicada originalmente pela Fundação Jerôme Lejeune e traduzida para o português por iniciativa da Comissão Nacional da Pastoral Familiar da CNBB, Keys to Bioethics tem capítulos sobre temas como aborto, reprodução assistida, pesquisas com embriões, eutanásia e doação de órgãos. Para a Jornada Mundial da Juventude, em julho do ano passado, a publicação ganhou um capítulo adicional sobre teorias de gênero, e era essa a versão distribuída aos professores. Foi justamente esse trecho que causou a polêmica. Na determinação de recolhimento das cartilhas, a promotora Renata Scharfstein afirmou que o conteúdo era "discriminatório (homofóbico e machista)". O material seria "conservador, machista, homofóbico e transfóbico", nas palavras de Stela Caputo, coordenadora do grupo de pesquisa, em entrevista ao jornal O Globo.

O MP ainda ordenou que a Seeduc realizasse "campanhas de esclarecimento em toda a rede estadual sobre a necessidade de respeito a todos os modelos familiares e orientações sexuais, bem como a fim de neutralizar qualquer conteúdo eminentemente religioso divulgado nas cartilhas (em especial a fim de repudiar o conteúdo descrito como ‘Teoria do gênero’)". Como, na avaliação do MP, as exigências foram cumpridas pela Seeduc, decidiu-se pelo arquivamento do inquérito.

Publicidade

Apesar das afirmações do MP e de Stela Caputo, uma leitura atenta do capítulo final da cartilha, em suas páginas 68 a 75, mostra que não há nela nenhuma incitação de ódio a homossexuais, nem conteúdos que denigram a mulher ou defendam a superioridade masculina. O que existe, de fato, é uma crítica à teoria de gênero, definida como "hipótese segundo a qual a identidade sexual do ser humano depende do ambiente sociocultural e não do sexo – menino ou menina – que caracteriza cada ser humano desde o instante da concepção". Keys to Bioethics afirma que a teoria de gênero "subestima a realidade biológica do ser humano. Reducionista, supervaloriza a construção sociocultural da identidade sexual, opondo-se à natureza". A cartilha, é verdade, traz argumentos contra a adoção de crianças por homossexuais, afirmando que deve-se priorizar o direito da criança a ter pai e mãe, em relação ao desejo daqueles que adotam. Mas considerar "homofóbico" este trecho é alargar indevidamente o conceito de homofobia para coibir a liberdade de expressão.

E é essa a impressão que fica da determinação do MP. Independentemente de entendimentos a respeito da laicidade do Estado que tornariam legítima ou não a distribuição de uma publicação confessional a professores da rede pública, o fato é que o conteúdo da cartilha também foi determinante para que o MP exigisse o recolhimento dos exemplares de Keys to Bioethics. As alegações de machismo e homofobia foram usadas para, no fim, tolher a discussão sobre teorias de gênero como se elas estivessem acima de qualquer contestação, o que obviamente não é verdade. Tanto que, na tramitação do Plano Nacional de Educação no Congresso Nacional, houve um debate vigoroso a seu respeito, com a decisão de não incluir esse conteúdo no PNE. Mesmo nos países onde essa ideologia já se aplica, como os escandinavos, a teoria de gênero é controversa. O Conselho Nórdico de Ministros (que inclui autoridades de Suécia, Noruega, Dinamarca, Finlândia e Islândia) ordenou o fechamento do Instituto Nórdico de Gênero, promotor de ideias ligadas às teorias de gênero, depois da exibição, em 2010, do documentário norueguês Hjernevask ("Lavagem cerebral"), que questionava os fundamentos científicos das afirmações dos defensores da teoria de gênero.

O justo repúdio à homofobia e ao machismo é, assim, instrumentalizado para calar vozes que discordem de determinados grupos de pressão. Conteúdos que não propagam ódio, mas também não se curvam ao politicamente correto ficam ameaçados pela transformação de certos conceitos em "palavras-talismã", invocadas sempre que é necessário encerrar um debate antes mesmo que ele comece. Keys to Bioethics foi vítima dessa estratégia, que, se continuar a ser aplicada, representará uma ameaça à sadia liberdade de expressão.

Dê sua opinião

Você concorda com o editorial? Deixe seu comentário abaixo e participe do debate.

Publicidade