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Editorial

A credibilidade do Judiciário arranhada

Um dos maiores patrimônios de um juiz em particular e do Judiciário como um todo é sua credibilidade. Ganham os magistrados e ganha a sociedade quando esta tem a certeza de que os pleitos levados aos tribunais são julgados pelos critérios corretos, dentro do que diz a lei, e por pessoas que não tenham outro interesse a não ser o de fazer justiça. Entre as ferramentas de preservação desta credibilidade estão as regras de impedimento e suspeição, presentes nos códigos processuais. Elas impedem que um juiz, desembargador ou ministro de tribunal superior julgue causas envolvendo pessoas com quem tenha relações tanto de afinidade quanto de inimizade.

Por isso, é difícil de acreditar que a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) tenha resolvido trabalhar contra a credibilidade da classe que representa, e ainda mais absurdo que o Supremo Tribunal Federal tenha lhe dado razão. A corte formou maioria para derrubar o inciso VIII do artigo 144 do Código de Processo Civil, que determina o impedimento do juiz em processos “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Com isso, qualquer juiz, se não tomar a iniciativa de se declarar suspeito por conta própria, fica apto a julgar ações envolvendo clientes de bancas de advocacia em que cônjuges, companheiros ou parentes trabalhem ou sejam sócios. Permanece valendo apenas o inciso III do artigo 144, que proíbe o juiz de julgar ações em que o cônjuge ou parente atua diretamente como advogado de uma das partes.

Já não basta que os ministros do STF inventem suspeições onde elas não existem; é preciso também derrubá-las onde elas são plenamente justificadas

Edson Fachin, o relator da ação, votou pela manutenção do inciso VIII, mas Gilmar Mendes abriu a divergência, afirmando, por exemplo, que “grande parte da força de trabalho de meu gabinete está envolvida na verificação de impedimentos, deixando de auxiliar no julgamento das causas” e que um advogado não tem a obrigação de informar um parente juiz que seu escritório defende alguma pessoa ou empresa que ele deverá julgar. Cristiano Zanin, que deu o quinto voto pela derrubada do inciso, acrescentou que a regra de impedimento “afronta a liberdade de iniciativa e ao direito ao trabalho e à subsistência”; Mendes também foi seguido por Luiz Fux, Kassio Nunes Marques, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes (cujo voto definiu a maioria).

No entanto, nenhuma dessas considerações tem como prevalecer sobre o direito constitucional de ser julgado por um juiz isento, e o dever igualmente constitucional de isenção do magistrado. A regra do inciso VIII nada tem de absurda ou desproporcional; pode, sim, ser de aplicação por vezes trabalhosa, dadas as circunstâncias concretas de bancas com grande número de advogados, mas considerações de ordem prática não se impõem sobre princípios e garantias definidos na Carta Magna. Nenhuma das informações envolvidas é confidencial e, por mais que um juiz não tenha como saber de antemão se os escritórios de seus cônjuges e parentes têm entre os clientes partes que ele terá de julgar, os advogados da parte contrária certamente haverão de avisá-lo se identificarem uma circunstância de impedimento.

Durante o julgamento, Câmara dos Deputados, Senado, Presidência da República, Advocacia-Geral da União e Procuradoria-Geral da República se manifestaram pela constitucionalidade do inciso VIII com um argumento muito evidente: a regra preserva a imparcialidade da Justiça ao manter a devida distância entre juízes e seus cônjuges e parentes. Essa obviedade foi ignorada pela maioria dos ministros do STF, para quem, agora, já não basta inventar suspeições onde elas não existem; é preciso também derrubá-las onde elas são plenamente justificadas. A Justiça não ganha em absolutamente nada com essa decisão – pelo contrário, sai com a credibilidade arranhada e com o caminho aberto para que futuras decisões judiciais sejam questionadas, ao menos do ponto de vista moral.

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