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editorial

A democracia fraturada

 | Jonathan Campos/Gazeta do Povo
(Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo)

Antes da sessão de terça-feira da Câmara Municipal de Curitiba, transferida para a Ópera de Arame, um vereador da oposição, Mestre Pop (PSC), questionou o efetivo policial mobilizado para garantir a realização da sessão legislativa. Os policiais poderiam estar combatendo a violência urbana em vez de fazer cordões de isolamento, afirmou o vereador. Poderiam mesmo, não fosse a necessidade de sua presença ali para garantir justamente que Mestre Pop e seus pares pudessem fazer seu trabalho. O precedente já tinha sido estabelecido pelas três vezes em que servidores contrários ao pacote de ajuste fiscal do prefeito Rafael Greca invadiram o prédio da Câmara, no Centro de Curitiba, e forçaram a suspensão de sessões de análise e votação dos projetos.

E a ação dos sindicalistas, na Ópera de Arame, mostrou que a mobilização do efetivo policial ali era plenamente justificada. Sabedores do fato de que uma nova invasão teria o mesmo efeito das anteriores – a interrupção da votação, vista como sucesso para os servidores –, eles forçaram a entrada, e para isso não hesitaram em lançar sobre os policiais até mesmo as grades que serviam como isolamento. Como saldo do confronto, entre os feridos havia mais PMs que servidores e, no caso mais grave, um soldado foi parar na mesa de cirurgia após sofrer fraturas no rosto, causadas por pedras. A polícia reagiu com cassetetes, spray de pimenta e balas de borracha, mas, ao contrário do que houve no 29 de abril, quando avançou sobre os manifestantes que tentaram invadir a Assembleia Legislativa, preocupou-se em manter o bloqueio à entrada da Ópera de Arame para que os vereadores pudessem votar o ajuste fiscal.

Há alguma diferença fundamental entre invadir plenários legislativos e lançar grades e pedras sobre policiais para feri-los? Não, não há

Ambas as situações são manifestações da mesma convicção de fundo: a de que a força bruta é aceitável como meio de fazer valer as próprias ideias, as próprias plataformas. A partir do momento em que se aceita a noção de que não se faz a omelete sem quebrar ovos, haver ou não literalidade nesse “quebrar” é questão de gradação que torna mais ou menos grave um comportamento que, em todos os casos, é claramente antidemocrático.

E, se chegamos ao ponto em que sindicalistas fraturam policiais, é porque foi sendo construído, aos poucos, um clima de tolerância com outras demonstrações de força. A fronteira entre o aceitável e o condenável tem sido movida há tempos na direção mais permissiva – no mínimo, desde as manifestações de 2013, quando black blocs chegaram a ser saudados por professores em greve no Rio de Janeiro. Mas muito antes disso todo um arcabouço intelectual, criado na Europa e importado para o Brasil, já justificava a “violência revolucionária” e encontrava simpatia no ambiente universitário, a partir do qual fez o salto para as ruas. Nem mesmo a morte do cinegrafista Santiago Andrade, em janeiro de 2014, durante um protesto, serviu para frear a ideia da força bruta como meio legítimo de ação.

As imperfeições de nosso sistema representativo – que se manifestam, também, no processo legislativo – não podem servir como justificativa para que um grupo, especialmente quando ele representa uma parcela específica da sociedade, pretenda tomar para si a missão de decidir o que pode ou não pode ser votado sem ter recebido para isso um mandato nas urnas. Sempre haverá discordância e descontentamento, mas a solução, em um ambiente de normalidade democrática (que, repetimos, não deve ser confundida com a perfeição total), está sempre na via institucional: pela pressão legítima, pelo convencimento, pelo recurso ao Poder Judiciário, se for o caso, mas jamais pela força bruta, pois, ainda que ela não quebre nada ou ninguém de forma literal, sempre termina fraturando a democracia. E, se ela for repetidamente golpeada, a recuperação e a cura se tornarão cada vez mais difíceis e dolorosas.

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