Todo ano, a organização Latinobarómetro sai às ruas para entrevistar os latino-americanos sobre diversos temas, com destaque para o apoio da população à democracia na América Latina. Os dados de 2024 foram publicados dias atrás, e a série histórica da pesquisa é um retrato de uma região onde o regime democrático ainda luta para se consolidar; e onde ditaduras cruéis convivem com países que, mesmo sem terem o que chamaríamos de “democracia vibrante”, conseguiram espantar a instabilidade a ponto de promover transições pacíficas de poder entre grupos bem opostos entre si. Mas também revela um continente onde as mazelas sociais ainda estimulam certa indiferença ou mesmo o desejo (ou a nostalgia, em certos casos) por um regime autoritário, mas que faça tudo funcionar.
A concordância com a frase “a democracia é preferível a qualquer outra forma de governo” subiu de 48% em 2023 para 52% no ano passado – um dado avaliado como positivo, embora ainda distante dos picos de 65% registrados no fim dos anos 90. Já a alternativa “em algumas circunstâncias, um governo autoritário pode ser preferível a um democrático” teve o endosso de 16%, um ponto a mais que no ano anterior, e em linha com a média histórica. Por fim, o “tanto faz um regime democrático ou um não democrático” foi a alternativa escolhida por 25% – uma queda de três pontos, mas ainda bem acima dos índices vistos até dez anos atrás.
O Latinobarómetro observou que os principais incrementos na consciência democrática ocorreram em países que viveram a alternância de poder, como Panamá (de 46% para 54%) e a Argentina, onde o apoio à democracia já estava bem acima da média latino-americana, e ainda assim subiu de 62% para 75% com a saída dos peronistas de esquerda, substituídos pelo libertário Javier Milei. É significativo que a Venezuela seja outro país com apoio crescente à democracia e números maiores que a média do continente, algo que o Latinobarómetro interpreta como um descontentamento em relação às manobras fraudulentas de Nicolás Maduro para se manter no poder, ainda que a preferência por uma ditadura também tenha subido naquele país, de 13% para 17%.
Há esperança para a democracia na América Latina, mas consolidá-la é trabalho de décadas com vários obstáculos pela frente
O instituto ainda aponta uma série de nuances que merecem destaque, como o caso dos chamados “democratas circunstanciais”: há uma diferença de oito pontos no apoio a democracia entre os que apoiam o governo de seu país (56%) e os que o desaprovam (48%) – neste recorte, a oposição ao governo de turno se reflete em maior indiferença, não em apoio ao autoritarismo. Outra categoria pesquisada é a dos “democratas insatisfeitos”, aqueles que apoiam a democracia, mas não estão satisfeitos com a democracia que vivem, e que são 19% segundo o Latinobarómetro.
Especialmente preocupante é o apoio a posturas pragmáticas: a frase “não me importaria se um governo não democrático chegasse ao poder caso resolvesse os problemas” teve 53% de concordância; os que aceitam que um presidente “passe por cima do Congresso, das leis e/ou das instituições para resolver os problemas” ainda são minoria (35%), mas estão em alta; e o número dos que acham que “deveríamos nos desfazer das eleições e do parlamento e deixar que os especialistas tomem as decisões” saltou de 21% em 2023 para 32% no ano passado. São sinais claros de que parte significativa da população de vários países enxerga a dinâmica democrática, com seus freios e contrapesos, e processos às vezes longos, como insuficiente para resolver as graves mazelas socioeconômicas da América Latina, a ponto de estar disposta a abrir mão da sua liberdade para vê-las resolvidas.
O Brasil tem números ora animadores, ora preocupantes: o apoio à democracia caiu entre 2023 e 2024, de 46% para 45%, abaixo da média continental, mas os entusiastas da autocracia são apenas 12%; o desafio está no contingente de indiferentes, terreno fértil para populistas, aventureiros e candidatos a autocratas, que são 31% no Brasil. O número dos que aceitariam que um presidente passasse por cima das leis, do Congresso ou das instituições é de 41%, também acima da média latino-americana. Parcela similar de brasileiros acredita que a democracia pode funcionar sem partidos políticos (41%), sem Congresso (34%) e sem oposição (37%).
Uma nuance que o Latinobarómetro não foi capaz de registrar, talvez por se tratar de um fenômeno bastante brasileiro, é a deterioração da democracia por meio da hipertrofiação do Judiciário. Quando perguntam aos entrevistados quem detém mais poder em seus países, as opções incluem empresas, meios de comunicação, militares e até redes sociais, mas não as supremas cortes (o Judiciário foi avaliado apenas em termos de aprovação). Também não há menções à proteção ao devido processo legal ou à imunidade parlamentar, institutos que vêm sendo gradualmente abolidos no Brasil e que são tão fundamentais para a democracia quanto a realização de eleições periódicas. Mas o instituto tratou da liberdade de expressão, descobrindo que mais brasileiros concordam com a afirmação “é preciso controlar a publicação de informação falsa ainda que isso limite a liberdade de expressão” (48%) que com a frase “é preciso garantir a liberdade de expressão sem se importar que informação falsa circule” (40%). E o Brasil só perde para El Salvador na proporção de entrevistados que dizem não ter o costume de manifestar opinião (62%).
“A América Latina mal começou a caminhar pelo caminho da democracia, com avanços e retrocessos, e mostra mais resiliência em direção à democracia que um abandono, à primeira vista”, diz o início das conclusões do relatório. A frase final é igualmente significativa: “Não levará três séculos para consolidar a democracia na região, como descreve Marshall, mas pensar que isso poderia acontecer em quatro décadas era claramente uma ilusão”. De fato, gigantes latino-americanos como Brasil e Argentina só se redemocratizaram nos anos 80 do século passado; praticamente inexiste país no continente que não tenha vivido golpes e quarteladas nos últimos 100 anos; e mesmo governos democráticos têm o hábito de espalhar entre o povo a ideia de que apenas o Estado é capaz de resolver os problemas da sociedade, o que naturalmente eleva a demanda por governos fortes. “Esses povos nunca tiveram o pleno exercício dos direitos em uma democracia, e por isso tampouco sentem perder muito quando chega um governante que os restringe”, diz o relatório.
Há esperança para a democracia na América Latina, mas isso depende de períodos cada vez mais longos de exercício do direito ao voto e de alternância de poder, de aumento na cultura democrática, de maior consciência sobre o alcance e a importância de garantias como a liberdade de expressão, de freios e contrapesos que funcionem a contento para impedir o surgimento de um superpoder que amarre os demais. É trabalho para mais algumas décadas, ainda que seja tentador ceder ao imediatismo de soluções rápidas e simplistas (e ineficazes) para os problemas da região.