A necessidade de encontrar respostas rápidas para uma doença que se espalhou pelo mundo em questão de semanas colocou toda a comunidade científica e médica em uma corrida na busca das melhores formas de conter a propagação do Sars-CoV-2. Na base da tentativa e erro, governos locais, nacionais e entidades internacionais como a Organização Mundial da Saúde (OMS) aconselhavam ou rejeitavam determinada ação em um certo momento, apenas para concluir mais tarde que estavam errados. Aos poucos, foi sendo construído um valioso consenso a respeito da importância de medidas como o uso de máscaras, o distanciamento interpessoal e a necessidade de evitar locais fechados e mal ventilados.
Uma frente de batalha específica foi a busca por um tratamento para os já infectados. Sem tempo hábil para que se desenvolvesse um antiviral específico contra o Sars-CoV-2, diversos medicamentos já existentes e com eficácia comprovada para outras doenças foram testados incessantemente, nas mais diversas dosagens, em diferentes estágios da doença, em grupos populacionais específicos, isoladamente ou em combinação com outras drogas. Com o passar dos meses, um pacote de medicamentos ganhou proeminência a ponto de figurar com mais frequência nas pesquisas: a cloroquina e a hidroxicloroquina, usadas no tratamento de malária, lúpus, artrite reumatoide e outras doenças; o antibiótico azitromicina; o vermífugo ivermectina; a vitamina D e o zinco.
Como absolutamente tudo o mais envolvendo o combate à Covid-19 – das máscaras às vacinas, dos lockdowns ao “isolamento vertical” –, o dito “tratamento precoce” teve seu uso politizado
Este pacote é hoje promovido no que se convencionou chamar de “tratamento precoce”, que seus defensores na comunidade científica e médica prescrevem a pacientes com suspeita de Covid-19 (que apresentam os sintomas, mas ainda não tiveram a confirmação da doença) ou que acabaram de ser diagnosticados – boa parte dos que afirmam serem eficazes esses medicamentos concordam que eles precisariam ser administrados no início da doença, pois já não seriam de muita ajuda nos estágios avançados.
Ocorre que, como absolutamente tudo o mais envolvendo o combate à Covid-19 – das máscaras às vacinas, dos lockdowns ao “isolamento vertical” –, os medicamentos acabaram tendo seu uso politizado, sendo promovidos ou desaconselhados mais de acordo com a convicção político-partidária de quem se refere a eles que por sua eventual eficácia ou ineficácia. Há bancos de dados inteiros com estudos realizados em todo o mundo, com resultados tanto positivos quanto negativos a respeito destes medicamentos, em que cada grupo se apoia para defender suas posições.
- Flavio Gordon: A cruzada mundial contra a liberdade de expressão e a autonomia médica
- O tratamento precoce contra a Covid-19 e as drogas de ação viral exuberante (artigo de Luiz Ovando, publicado em 9 de abril de 2021)
- Cristina Graeml: Guerra contra tratamento precoce de Covid-19 fere o direito à autonomia médica
Mesmo a comunidade médica não encontra unanimidade a respeito dos protocolos de tratamento. No caso brasileiro, por exemplo, enquanto a Sociedade Brasileira de Infectologia e a Associação Médica Brasileira afirmam que “as melhores evidências científicas demonstram que nenhuma medicação tem eficácia na prevenção ou no ‘tratamento precoce’ para a Covid-19 até o presente momento”, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, afirmou ser falsa “essa história de que está estabelecido na literatura que o tratamento precoce não tem efeito na fase inicial”, explicando que “há trabalhos que mostram os benefícios [da combinação de medicamentos] na fase inicial, e outros não”.
Ribeiro deixou claro que não estava afirmando a eficácia do chamado “tratamento precoce”, mas apenas defendendo a autonomia de médico e paciente na definição do tratamento, caso a caso. “Qual foi a nossa postura sobre o tratamento precoce? Deixar o médico definir o que é melhor para o paciente dele. O CFM não incentiva o tratamento precoce ou o condena, tampouco bane”, disse. Apesar de a autonomia – o respeito à decisão do paciente sobre seu tratamento – ser um dos quatro princípios basilares da bioética, ela vem sendo erodida neste processo de politização da pandemia, o que é bastante preocupante.
Não nos cabe, aqui, afirmar se o “tratamento precoce” funciona ou não. Como acabamos de afirmar, há estudos apontando para todas as direções, e cujos resultados estão sob constante escrutínio da comunidade científica e da imprensa especializada. Mas a verdadeira demonização a que o tema está sendo submetido salta aos olhos de qualquer pessoa preocupada com um debate intelectual honesto, tenha ou não familiaridade com o processo de produção científica. Postagens sobre o tema – mesmo vindas de especialistas, ou citando artigos publicados em revistas científicas conceituadas – são apagadas pelas Big Techs e seus autores recebem suspensões. Em um caso escancarado de duplo padrão, exige-se das pesquisas sobre esses medicamentos um grau de rigor que não é solicitado, por exemplo, nos testes com as vacinas – exceção esta, aliás, que é aberta com toda a razão, pois há uma catástrofe sanitária em andamento e que pede respostas imediatas.
O bloqueio total do debate sobre o “tratamento precoce”, além de absurdo, ainda é irracional, por vários motivos. O primeiro, e mais evidente, é a ausência de qualquer outro tratamento para a Covid-19; a única opção disponível é simplesmente tratar dos sintomas e aguardar o curso natural da doença no organismo, que pode tanto regredir, caminhando para a cura, ou se agravar. Além disso, como lembrou o presidente do CFM, a variedade de resultados dos diferentes estudos conduzidos com esses medicamentos não permite chegar à conclusão irrefutável, acima de qualquer dúvida, de que os medicamentos são ineficazes contra o coronavírus ou até mesmo prejudiciais à saúde. Enquanto isso não ocorre, esta possibilidade segue aberta; bloqueá-la, seja por meio da censura a qualquer menção ao “tratamento precoce”, seja pela tentativa de responsabilização judicial de gestores que o oferecem em suas redes de saúde, como demonstram várias investigações e pedidos de esclarecimento feito por Ministérios Públicos país afora, é pura irresponsabilidade.
Diante de uma situação de emergência sanitária, não se pode negar a um paciente infectado e a seu médico o direito de recorrer ao tratamento que ambos julgarem o mais correto, ainda que em caráter experimental
Sim, o mundo só vai vencer de vez a pandemia com a vacinação em massa; sim, as medidas de higiene e distanciamento são importantes na prevenção. Mas, diante de uma situação de emergência sanitária, marcada pela extrema incerteza e na qual praticamente tudo ganha um caráter experimental, não se pode negar a um paciente infectado e a seu médico o direito de recorrer ao tratamento que ambos julgarem o mais correto, estando todos cientes de que, tendo sido esses medicamentos desenvolvidos para tratar outras doenças, e não a Covid-19, o sucesso não é garantido e pode haver possíveis efeitos adversos na sua administração. Aliás, para os médicos e pacientes convictos de que o procedimento correto é justamente o controle dos sintomas, seria igualmente insensato – e uma violação de sua autonomia – impor-lhes o coquetel de medicamentos do “tratamento precoce”. O respeito a essa autonomia, no entanto, está sendo atropelado pela interdição de um debate que pode representar, literalmente, a diferença entre a vida e a morte de pacientes, com uma censura motivada menos pelo rigor científico e mais por preconceitos ideológicos.