Dias atrás, causou impressão a foto do Museu do Amanhã, no Rio de Janeiro, projeto do celebrado arquiteto espanhol Santiago Calatrava. O local apareceu entregue ao lixo, logo depois de sua inauguração. Mas o impacto não durou muito. Logo depois foi a vez do Museu da Língua Portuguesa, na Estação da Luz, em São Paulo. No lugar do lixo na Praça Mauá, o fogo, para horror geral da nação.
O incêndio do dia 21 não deixou muito para contar a história do nosso bê-á-bá – para citar uma das propostas do local que surgiu como um “parque de diversões da língua”. A parte interna do prédio – um dos melhores exemplares brasileiros da arquitetura eclética da Belle Époque, erguido entre 1888 e 1901 com tecnologia e materiais importados da Inglaterra – virou paçoca em minutos, consumindo um dos espaços culturais mais populares do país. Desde 2006, dizer que visitou São Paulo é ouvir a pergunta “foi ao Museu da Língua Portuguesa?”.
A possibilidade de refazer o Museu da Língua Portuguesa não tira o impacto simbólico do incêndio
A museologia do espaço é imaterial, seguindo a tendência. O acervo está quase todo digitalizado e é possível reconstruir o local. Tomara que o seguro de R$ 45 milhões seja o suficiente para devolver não só a São Paulo, mas ao Brasil, o local que ajudou a consolidar a maior cidade do país como uma “cidade espetáculo”. A expressão – cunhada por Néstor García Canclini – é dúbia e controvertida, mas se presta a traduzir a capital que se converteu em sinônimo de ótima programação cultural. São Paulo, além de esbanjar a alta cultura, se tornou bamba em cultura de entretenimento. É o caso do Museu da Língua Portuguesa, idealizado pelo poeta e antropólogo baiano Antônio Risério.
A possibilidade de refazer o museu, contudo, não tira o impacto simbólico do incêndio, em pleno dezembro, justo quando o país diz adeus ao ano que, no popular, foi uma verdadeira “carne de pescoço”. Não bastasse a lama do petrolão e da barragem de Mariana, dando uma cor incerta ao Rio Doce; não bastasse a volta do dragão da inflação a nos cuspir chamas; não bastassem o desemprego e o Aedes, agora vem o fogo num espaço cultural que enchia os brasileiros de orgulho. Os estrangeiros adoram ouvir os brasileiros falarem, pois lhes soa como música. Os portugueses dizem que falamos “português com açúcar”. Por aí vai. E eis que de repente o local em que dorme nosso idioma vira fumaça. “Era só o que nos faltava”, ouviu-se aqui e ali, no adiantado da hora de 2015.
Paralela aos ditames da emoção vem a estatística. Há dois anos, São Paulo viu ruir o Memorial da América Latina, também debaixo de fogo. O Museu do Ipiranga está fechado por falta de algo próximo de tudo. Esse novo sinistro num espaço cultural já gerou seus números, dignos de causar vermelhidão na face. Nada menos que nove espaços da capital paulistana não estão em dia com o Corpo de Bombeiros. Tudo isso depois da tragédia da Boate Kiss e seus 242 mortos, o que poderia ter nos ensinado alguma coisa. Apenas de 2006 a 2009, o Museu da Língua Portuguesa recebeu 1,6 milhão de visitantes. Ano passado, foram 387 mil visitantes. Causa frio na espinha imaginar que o fogo – que se alastrou com um estalar de dedos, depois de um curto-circuito, segundo relatos – poderia ter surpreendido a casa cheia, em plenas férias de verão. A tragédia aconteceu numa segunda-feira, quando o museu fecha, e deixou uma vítima – o bombeiro civil Ronaldo Pereira da Cruz, 39 anos. Mas “e se”?
Uma sopa de gente lamentou o local que nos brindou com mostras memoráveis sobre Guimarães Rosa e Clarice Lispector, para citar dois. Nesse sentido, pura emoção, em tempo real, enquanto o mais do que centenário teto da Estação da Luz beijava o chão. O Brasil chorou um museu – e isso diz algo.
Ficou presa ali, vítima da ineficiência, mais do que do acaso, a sala dos “Falares”. Podia-se ouvir o cearense, o goiano e o gaúcho. Falamos diferente, mas é igual. Também morreu ali a sala “Palavras Cruzadas”, que mostrava ao visitante um pouco de tantas línguas que formaram o português – esse idioma que traga tudo e o transforma no tal do idioma inculto e belo. Resta derramar uma lágrima pelo Museu da Língua Portuguesa – que seja a última de 2015.
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