A dívida pública – especialmente em termos relativos, como porcentagem do Produto Interno Bruto (PIB) – voltou a ocupar os noticiários recentemente, seja porque o ciclo de aperto monetário realizado recentemente pelo Banco Central encareceu a dívida, seja porque ela vem sendo especulada como um possível indicador para o substituto do teto de gastos, que será definitivamente enterrado caso a PEC fura-teto prospere na Câmara dos Deputados. Já se falou em adotar metas de endividamento, e técnicos do Tesouro Naiconal elaboraram uma proposta de âncora fiscal ainda baseada no teto de gastos, mas na qual a dívida como porcentagem do PIB e sua trajetória (ascendente ou descendente) seriam critérios para se permitir uma expansão dos gastos acima da inflação de um ano para outro. Mas este é assunto complexo e carregado de detalhes, cuja demonstração e análise exige deixar claro do que se está falando.
O primeiro aspecto a pontuar é que a expressão “dívida pública” é incompleta e insuficiente. Existe o setor público federal (administração direta, autarquias do governo federal, fundações e empresas estatais federais) e existe o setor público municipal e estadual (os estados, os municípios, sua administração direita, autarquias, fundações e empresas estatais locais). Assim, de início é necessário distinguir os conceitos de “Dívida Pública Federal” (DPF), que é apenas do setor público federal, e “Dívida Pública Consolidada” (DPC), que abrange os municípios, estados e a União, ou seja, o setor público do país inteiro.
Em ambos os casos (DPF ou DPC), é necessário definir também se falamos somente da dívida interna, em moeda nacional, ou da dívida pública total, nela incluída a dívida externa, em moeda estrangeira. A dívida pública total e consolidada é a soma das dívidas dos municípios, dos estados e da União, dentro do Brasil (dívida pública interna) e fora do Brasil (dívida pública externa). Ainda se pode acrescentar a distinção entre “dívida bruta” e “dívida líquida”, pois o setor público pode fazer uma dívida para emprestar os recursos às empresas produtivas, levando o governo a ter créditos a receber. Como exemplo, o governo federal em várias oportunidades colocou dinheiro no BNDES para que este o emprestasse ao setor privado, de forma que o BNDES tenha ficado devendo ao Tesouro Nacional, valores esses deduzidos da dívida pública federal bruta para se obter a dívida pública federal líquida.
Critérios do Banco Central para medir dívida pública como porcentual do PIB desconsideram títulos em posse do Tesouro, enquanto cálculo do FMI leva esses títulos em consideração e resultam em um porcentual maior
Esses aspectos são de complexidade técnica, mas necessários para que as análises e as discussões sobre a situação das finanças públicas e a política econômica se façam com lógica e domínio do problema em discussão. Tem sido comum a divulgação de manchetes econômicas e matérias tratando da DPF, cujo total atingiu R$ 5,78 trilhões em outubro de 2022, para um PIB estimado de R$ 9,6 trilhões neste ano, representando, portanto, 60,2% do PIB. Essa é a dívida bruta do governo federal; logo, não leva em conta as dívidas dos estados e municípios. Segundo o secretário do Tesouro Nacional, Paulo Valle, a dívida pública total deve terminar o ano em 76,2% do PIB.
E quais são as razões que levam o governo a fazer dívidas? A explicação é simples: após o governo pagar as despesas de pessoal, o custeio dos serviços públicos, os gastos da máquina estatal e os investimentos, o que sobra é chamado de “superávit primário” (se o saldo for positivo) ou “déficit primário” (se o saldo for negativo). Esse saldo primário tem esse nome por ser apurado antes de deduzir os juros do ano sobre a dívida pública já feita. Após contabilizar-se os juros, chega-se ao “saldo nominal”, que será um superávit nominal ou déficit nominal.
O superávit primário, quando há, é destinado a pagar os juros da dívida pública e o principal das dívidas vencidas no ano. Se, em vez de superávit, houver déficit, além de não pagar a dívida vincenda no ano nem os juros anuais, o governo tem de tomar novos empréstimos para fechar seu caixa, ou seja, aumentar sua dívida. Esses novos empréstimos devem ser iguais à soma dos juros do ano sobre a dívida anterior mais o déficit primário do próprio ano, como condição para o fechamento das contas do governo.
A maior parte da dívida pública é a chamada “dívida mobiliária”, por ser representada por títulos públicos emitidos pelo Tesouro Nacional, os quais são entregues ao Banco Central (BC), que credita o dinheiro na conta do Tesouro. O BC vende esses títulos ao público segundo seus critérios e necessidades na gestão do estoque de moeda em circulação. Quem compra os títulos da dívida pública (os emprestadores de dinheiro ao governo) são as pessoas (que podem comprar títulos do Tesouro Direto), as instituições financeiras, os fundos de investimentos, fundos de previdência, seguradoras, investidores estrangeiros etc.
No entanto, o BC pode reter em seu poder títulos do Tesouro Nacional segundo julgue ser interessante para a administração da política monetária e do meio circulante. Assim, uma parte da dívida pública é representada por títulos públicos que não foram vendidos aos agentes de mercado. E aqui surge uma divergência estatística importante, pois o Brasil costuma calcular sua dívida sem incluir tais títulos que foram emitidos, mas permaneceram em poder do BC. Já o Fundo Monetário Internacional (FMI) faz seu cálculo considerando tais títulos e, segundo o Monitor Fiscal divulgado pela entidade em outubro, a dívida pública brasileira deve terminar 2022 em 88,2% do PIB, subir para 88,9% no próximo ano e ficar acima de 90% pelos quatro anos seguintes, ao menos. Ressalte-se que tal conta foi feita antes do resultado da eleição presidencial e da tramitação da PEC fura-teto. É uma porcentagem alta para uma nação emergente e perigosamente próxima daquela de países desenvolvidos, que, apesar de muito endividados, são capazes de rolar sua dívida a custo baixo, o que o Brasil não consegue fazer.
Como se não bastasse o uso de um critério que faz a dívida brasileira parecer menor do que realmente é, ainda é preciso lembrar que, quando o BC adquire títulos públicos e não os vende ao mercado, os valores que foram creditados na conta do Tesouro Nacional referentes a tais títulos significam expansão monetária, ou seja, fabricação de dinheiro circulante, ato que tem seus limites em face do risco de produzir inflação. A única expansão da base monetária em circulação que não provoca risco à inflação é aquela correspondente ao crescimento do PIB, pois o produto real nacional é o lastro essencial para o dinheiro que circula.
Quando o BC adquire títulos públicos e não os vende ao mercado, os valores que foram creditados na conta do Tesouro Nacional referentes a tais títulos significam expansão monetária, a popular “impressão de moeda”
Assim sendo, é importante destacar que, embora o BC possa legalmente e operacionalmente comprar títulos do Tesouro Nacional e não os vender ao mercado, essa opção é limitada e não pode ser usada sem considerar o crescimento do PIB, pela razão simples e já citada de que isso é mecanismo de expansão monetária ou, na linguagem popular, impressão de dinheiro e aumento da moeda em circulação. O conceito de “impressão de dinheiro” não é físico, à medida que a moeda em circulação é a soma de moeda manual mais moeda escritural. O estoque de moeda manual em circulação é mínimo e caminha para sua quase extinção, dados os meios eletrônicos e a futura moeda digital que o BC está para lançar no Brasil.
O entendimento técnico desse complexo emaranhado monetário desmonta qualquer ideia amadora de que o governo pode emitir títulos públicos e obter dinheiro vendendo-os ao BC sem que este tenha de vender esses títulos aos agentes econômicos privados. Como administrador do meio circulante, dos meios de pagamentos, da moeda emitida e do controle da inflação, o BC tem a responsabilidade de manter sob rígido controle todo esse mecanismo, e nisso está a principal razão pela qual países civilizados estabelecem autonomia do BC em relação ao governo; do contrário, o BC perde condições para cumprir sua função de responsável pela estabilidade da moeda e, portanto, pelo controle da inflação. Governos populistas e políticos irresponsáveis não gostam de bancos centrais fortes e independentes, e por isso retiram deles o poder de, como gastadores contumazes, estourar as contas públicas, criar inflação e promover recessões. Que isso sirva de alerta à população brasileira para rejeitar de pronto os discursos que pregam retirar o pouco de autonomia que ao Banco Central do Brasil foi dado por legislação aprovada no Congresso Nacional.
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