| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

Quem diz que Brasília é um ambiente à parte, deslocado do resto do Brasil, não contava que uma sala do Senado estaria fora de conexão não apenas com o país, mas com a própria realidade e com a matemática. Nesse local único, senadores membros da Comissão Especial de Inquérito (CPI) da Previdência Social tomaram conhecimento do relatório de Hélio José (Pros-DF), réplica idêntica do pensamento do presidente da comissão, Paulo Paim (PT-RS): “Tecnicamente, é possível afirmar com convicção que inexiste déficit da Previdência Social ou da Seguridade Social”, diz o texto, que não para aí, propondo uma emenda constitucional que eleve o teto do INSS para dez salários mínimos, ou quase R$ 9,4 mil.

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A tese é antiga, e consiste em não analisar a Previdência Social isoladamente, mas dentro do conjunto da Seguridade Social, que tem outras fontes de renda além da contribuição previdenciária de patrões e empregados, mas também tem outros usos, como a saúde e a assistência social. A Seguridade Social, alegam os defensores desse malabarismo contábil, capitaneados pela Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita (Anfip), é superavitária, e por isso não há por que fazer mudanças na Previdência. Uma conta que só funciona com a ajuda de certa criatividade contábil, pois precisa desconsiderar previdência dos servidores da União, a desvinculação de receitas da Seguridade e, ainda por cima, considera as desonerações de contribuições sociais (um dinheiro que nem existe, pois não foi arrecadado) como receita.

A tese da “fraude do déficit” só funciona com a ajuda de certa criatividade contábil

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A CPI – que desde o início tinha o objetivo de ser um contraponto à pressão do governo pela reforma da Previdência – e seu relator se escoram no fato de ter recebido centenas de pessoas, mas aparentemente uma série de informações relevantes entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Os senadores poderiam ter prestado atenção ao que diz o Tribunal de Contas da União (TCU), que atesta um rombo de R$ 138 bilhões no INSS e de R$ 77 bilhões na previdência dos servidores públicos – apenas no ano passado. Poderiam ter prestado atenção à própria Anfip, cujos dados de 2016 apontam déficit de R$ 57 bilhões na mesmíssima Seguridade Social que os auditores garantem ser superavitária.

Poderiam, ainda ter prestado atenção à demografia básica, que aponta para o envelhecimento rápido da população, que onerará ainda mais uma Previdência que funciona no sistema de repartição, em que as contribuições dos trabalhadores ativos hoje pagam os benefícios dos atuais aposentados, em vez de criarem uma poupança que bancará a aposentadoria do próprio trabalhador. E, sabedores de que os recursos dos impostos não são infinitos, quanto mais a Previdência gastar, menos sobrará para as outras áreas da Seguridade Social – e, se a opção for aportar mais dinheiro à Seguridade, será preciso tirar de algum outro lugar, como investimentos em infraestrutura, ou educação.

Leia também:O déficit da Previdência é muito real (editorial de 29 de setembro de 2016)

Leia também:Vive mais? Tem de trabalhar mais (artigo de Renato Follador, publicado em 13 de setembro de 2015)

Qual o problema de todos esses dados? Não coincidiam com a conclusão previamente tomada pelos integrantes da CPI. Se a realidade é dura demais e atesta a necessidade de reformar a Previdência, ignore-se a realidade e prefira-se a ideologia. É assim que a Anfip culpa a crise pela queda na arrecadação do sistema previdenciário, em vez da dinâmica demográfica – isso apesar de os resultados da Seguridade Social já estarem caindo desde 2013, quando a recessão ainda não havia destruído o emprego de milhões de brasileiros.

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O teatro em que se transformou essa CPI é fatal para o país. O déficit previdenciário brasileiro é, sim, para usar as palavras do relatório de Hélio José, “perene e explosivo”. Se houvesse sensatez no Congresso, já deveríamos estar discutindo como fazer a reforma da Previdência. Em vez disso, os parlamentares ainda estão se perguntando se essa reforma é mesmo necessária. Enquanto isso, a bomba-relógio que suga parcelas cada vez maiores do orçamento nacional continua armada.

A negação da realidade é tanta que chega a surpreender que o relatório não tenha proposto que o governo simplesmente imprima dinheiro para bancar a Previdência e as aposentadorias de R$ 9,4 mil. Mas, como o relatório ainda será analisado e votado, com direito a emendas, é bem possível que algum senador apareça com essa ideia brilhante.