Em editorial sob o título “Um novo mundo complexo”, em 20 de junho de 2019, a Gazeta do Povo afirmava que ao fim de 2020 o mundo terminará a segunda década deste século tendo vivido acontecimentos que deixarão marcas profundas na conformação do meio ambiente, do sistema produtivo e do trabalho em todas as regiões do mundo. Esses acontecimentos significarão mudanças profundas na vida econômica, social e política, e de cujos efeitos ninguém escapará. Entre as ocorrências, a quarta revolução tecnológica, as novas descobertas científicas, os avanços na biotecnologia, a explosão da inteligência artificial, os robôs cognitivos e as mudanças no funcionamento das cidades significam a substituição de grande parte do trabalho humano por máquinas e meios automatizados, cujo símbolo maior é o robô cognitivo, capaz de realizar tarefas antes somente possíveis por meio do intelecto humano.
Nas próximas duas ou três décadas, o planeta passará por mudanças rápidas, em um período curto, e o maior fantasma social será o desemprego de seres humanos. Outro problema, mencionado no editorial referido, é a crise das máquinas burocráticas de governo. Estruturas inchadas, órgãos públicos ineficientes e corrupção elevada são alguns dos problemas que impõem a necessidade de reformar os sistemas de governos e as máquinas estatais, num ambiente em que o setor público está contaminado por déficits crônicos e dívidas gigantescas. Agora, em pleno fim do primeiro trimestre do último ano da segunda década deste século, o mundo é atingido por uma das mais complexas crises da história. O surgimento de um vírus com altíssima capacidade de transmissão, espalhando-se pelo mundo inteiro em velocidade alarmante, coloca a humanidade em confinamento e isolamento social, derrubando o sistema produtivo e jogando o produto nacional para baixo, com devastação da renda do trabalho, especialmente dos autônomos e prestadores de serviços pessoais.
O governo não tem saída a não ser desistir do equilíbrio fiscal, executar um programa de obras, facilitar o crédito e ampliar a transferência de renda aos pobres e aos trabalhadores autônomos
O aspecto mais sutil e grave desta crise no campo econômico é que ela impôs forte parada no sistema produtivo, de forma que há risco de desabastecimento em escala elevada. Mesmo em períodos de guerras ou depressões econômicas, os empresários, os trabalhadores e os prestadores de serviços não ficam impedidos de ir a suas fábricas, escritórios e lojas comerciais, a não ser por dificuldades de mercado, transporte e logística. Na crise do coronavírus, o recolhimento em casa é a única forma eficiente que humanidade encontrou para combater a proliferação do vírus e conseguir reverter a curva de crescimento exponencial do número de pessoas atingidas, forçando a não ida aos locais de trabalho.
Na Grande Depressão dos anos 1930, o economista John Maynard Keynes foi quem criou o arcabouço teórico para as medidas de reativação da demanda agregada (consumo mais investimento), por meio de amplo programa de gasto público, sem a necessidade de aumentar a carga de impostos cobrados da população. Segundo a teoria keynesiana, o governo deveria fazer obras e programas sociais, pagando a conta com emissão monetária, pois, segundo ele, o elevado número de trabalhadores desempregados e a capacidade ociosa das fábricas e comércio dariam conta de rapidamente aumentar a produção e a oferta de bens e serviços, de modo que a emissão de dinheiro não teria efeitos inflacionários. Ao contrário do que muitos pensam, não é apenas a expansão da moeda circulante que cria inflação, mas a falta de produtos para atender a demanda feita com o novo estoque de moeda circulante. Os aumentos de preços ocorrem inevitavelmente em momentos de desabastecimento, independentemente do modo de produção, seja capitalista ou socialista.
Entretanto, o governo não tem saída a não ser desistir do equilíbrio fiscal, executar um programa de obras, facilitar o crédito e ampliar a transferência de renda aos pobres e aos trabalhadores autônomos. Mas a emissão monetária para cobrir os gastos não pode ser ilimitada, por uma razão simples: com a posse da moeda emitida para sustentar o aumento do gasto público, a população acorrerá às pressas ao mercado e não vai encontrar produtos em oferta na quantidade suficiente para atender ao tamanho da demanda. O maior problema desse tipo de solução passa a ser como dosar e sincronizar, no tempo e no total, a expansão monetária com o tamanho do produto nacional.
Se a solução fosse apenas dar dinheiro para a população afetada, em poucas semanas o governo conseguiria executar a doação (que não é dinheiro físico, mas moeda escritural). Mas, como ninguém se alimenta de cédulas de moeda, os consumidores iriam encontrar lojas vazias e fábricas sem estoque, de forma que o resultado seria um só: os preços explodiriam, haveria inflação ou, quem sabe, uma hiperinflação. Se a emissão de dinheiro e distribuição à população resolvessem o problema, não haveria nação pobre. A lição mais simples em economia é que um povo só consome o que ele mesmo produz. A moeda é apenas um meio de troca e medida de valor. Em si mesma, ela não mata a fome de ninguém. Esse problema não é só do Brasil: é do mundo inteiro, especialmente nos países diretamente afetados pelo contágio do coronavírus.
Uma coisa é certa: o mundo não será o mesmo após essa crise e após o confinamento que a população se impôs como meio de enfrentar o mal. Crenças, valores, comportamentos, teorias e o modo de conduzir a vida econômica e social serão objeto de discussões, debates e, certamente, muitas mudanças. A dinâmica da história é assim. São os grandes eventos, bons ou maus, que mudam o curso da realidade.