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Editorial

A era da arte só por sarro

Num mundo perfeito, a recém-divulgada pesquisa "Panorama Setorial da Cultura Brasileira" – assinada pela pesquisadora Gisela Jordão, em parceria com o governo federal – seria lida com paixão. À semelhança de outra pesquisa ("Retratos da Leitura no Brasil", do Instituto Pró-Livro), "Panorama" vem à baila para suprir um dos maiores vácuos da vida nacional: as estatísticas culturais. Mesmo entre os mais respeitados agentes do mundo das artes há quem defenda a inutilidade de dados dessa natureza: o espírito criador tem poder de transformar e ponto. Na vida como ela é, contudo, um bom levantamento ajuda a negociar o lugar da cultura no mundo do capital, garantindo que seja praticada e protegida.

"Panorama" cumpre bem a tarefa. E vem em boa hora. Pesquisadores como Gisela Taschner (falecida em 2012) e Luiz Gonzaga Godói Trigo, para citar dois, ajudam a entender o lugar do lazer e do entretenimento na sociedade brasileira dos anos 2000. Uma sociedade com mais opções de consumo, mais cosmopolita, que se abre para formas de convivência que extrapolam o círculo familiar. Trigo está entre os que nos acordam para ver que o entretenimento é indústria, e um grande guarda-chuva que abriga de tudo um pouco: o cinema de arte e o blockbuster, o esporte, a moda e o turismo.

Nesse cenário, tudo se tornou cultura. Como diz o crítico britânico Terry Eagleton, ser culto equivalia a conhecer Shakespeare ou Balzac, em cujas obras poderíamos enxergar a natureza humana. Não mais. O conceito está pulverizado, como se houvesse tantas culturas quanto pessoas. Na web, há um sem número de microrredes de adeptos disso e daquilo. A diversidade beira o inimaginável, do rap aos quadrinhos, urbanidades, ao lado da pintura ou teatro. "Panorama" reflete esse quadro. Não há um consumidor único de cultura – e, ame ele os sermões do Padre Vieira ou a Festa do Peão Boiadeiro, é um ator social. Para os puristas, admitir o consumidor de quinquilharias culturais como um ser influente deve pesar nas costas, mas é melhor reconsiderar. Do contrário, vigora o maniqueísmo.

Por essas e outras, "Panorama Setorial da Cultura Brasileira" acerta ao dividir seus 1.620 entrevistados de 74 municípios em "não consumidores" de cultura – com 42% do bolo; "consumidores de cinema", "consumidores de festa", "consumidores de cultura" – esses com míseros 10% do total. Se no geral os dados parecem curiosos, na miudeza chegam a ser assombrosos. Um grupo como o de consumidores de cinema, por exemplo, traz esperança, mas há de se considerar que os filmes são consumidos em espaços fechados, como shoppings, e implicam em baixa interação com a cidade. Cultura desvinculada do urbano não é bom sinal.

Tem mais: para 67% dos entrevistados, praticar cultura é frequentar a religião e ouvir música; 54% vão a parques e 40% leem jornais, em algum momento, não todo dia, nem toda semana, acenando para a falência da relação entre ser culto e ser um homem público. Mesmo assim, não se recomenda qualquer análise apressada desses dados. Antes, deve-se considerar que a ideia de cultura transita, bêbada, por mares bravios. Para uns poucos, a cultura tem de ser novidade, provocação, mas para a maioria não: tem de ser repetição confortável daquilo que já se conhece, como brincadeira de criança. Cultura como reflexão e informação, ora, é coisa de escola, "outro departamento". Daí os índices rastejantes de frequentadores de bibliotecas (5%) e de teatros (13%).

A associação de cultura com diversão salta nas porcentagens do estudo. A cultura, dizem os ouvidos, tem de ser leve, agradável, barata, coletiva, abordar tema palatável, ser indicada por amigos (aval de críticos? Não!) e ocorrer bem pertinho de casa, cabendo nas quatro horas que sobram para lidar com isso a cada jornada. A solidão, condição para o encontro com a arte, não goza de muitos entusiastas: para 81%, cultura, só se for acompanhado.

A grande pergunta deixada pelo "Panorama" é por que tanta gente apontou a religião como prática cultural. Em pesquisa similar dos anos 2000, feita pelo Ministério da Cultura, essa tribuna de honra era ocupada pelas festas familiares. Tem a ver. As duas situações implicam em estar juntos, em cantar, em sair de casa, estar com pessoas, ser visto. A cultura elaborada oferece a mesma experiência, mas exige percepção, análise, esforços que devem estar guardados em outro lugar, a descobrir. Sejamos otimistas.

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