A segunda maior economia do mundo está praticando perseguição de uma minoria étnica e religiosa. Numerosos relatos, inclusive de organismos internacionais, dão conta de que a China está removendo à força os membros da etnia uigur, praticantes do islamismo, e os enviando em trens para “campos de reeducação” sobre os quais pouco se sabe. Os uigures, que vivem no nordeste chinês, também estão sendo esterilizados a força e submetidos a abortos compulsórios. Isso, se acusações se confirmarem, basta para que a China seja responsabilizada por um genocídio. A Convenção de Genebra define que a “imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos” em um determinado grupo étnico configura prática de genocídio e, portanto, um crime passível de punição pelo Tribunal Penal Internacional. E, apesar de protestos, inclusive de alguns representantes da ONU, a reação global é pálida quando considerada a gravidade do problema.
A experiência nos mostra que o equilíbrio global até pode tolerar a existência de uma superpotência sob um regime democrático, como os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que pode conviver com tiranias de pouca expressão. Mas a combinação de um superpoder com um regime autoritário tem potencial para produzir tragédias em grande escala. O fato de a China ser um parceiro comercial de primeira importância para o restante do mundo não significa que o regime comunista se converteu em democracia liberal. Com muito mais solidez, pode-se argumentar no sentido contrário: ao tornar os países ocidentais dependentes de seus produtos, a China ganha força em vez de perdê-la.
Graças a uma mão de obra ainda empobrecida e sem direitos trabalhistas, ao desrespeito pela propriedade intelectual e a uma política agressiva de infraestrutura que só uma ditadura pode sustentar, a China é capaz de produzir bens a um preço muito inferior do que os países da América e da Europa. Mas, como a pandemia de coronavírus tornou mais evidente, existe um preço a se pagar: até mesmo países ricos, como os Estados Unidos, se viram dependentes dos chineses para adquirir medicamentos e equipamentos de proteção.
A China está em plena política expansionista - uma política com muitas frentes. Graças a sua política comercial, o regime de Pequim consegue dobrar gigantes no Ocidente. A poderosa NBA, por exemplo, passou a proibir que os torcedores exibissem a frase “Free Hong Kong” (Hong Kong Livre) em suas arenas. Já o Google começou a construir um sistema de busca que censurasse termos considerados sensíveis pelo regime comunista chinês. A companhia acabou abrindo mão dos planos depois das críticas.
A ofensiva também pode ser notada Brasil. A Embaixada da China chegou a enviar uma carta aos parlamentares brasileiros pedindo que eles não parabenizassem a nova líder eleita de Taiwan (território que, na prática, é semi-independente do governo central) ou mesmo mantivessem contatos oficiais com representantes taiwaneses. A nova lei de segurança nacional de Hong Kong, imposta pelo governo comunista de Pequim há duas semanas, tem um objetivo semelhante: sufocar o espírito democrático de um território que, historicamente, se manteve autônomo em relação ao regime central.
Para se ter uma ideia, por terem protestado contra a perseguição das minorias étnicas, até os senadores americanos Ted Cruz e Marco Rubio, ambos republicanos, sofreram sanções do governo chinês.
O expansionismo de Pequim também se demonstrou em um plano mais grave quando tropas da China entraram em um conflito com militares da Índia perto da fronteira entre os dois países no mês passado. Duas dezenas de indianos morreram.
A lista dos sinais (pouco sutis) emitidos pelo governo chinês é longa. Diante disso, o que se vê da comunidade internacional é muito pouco: apenas os Estados Unidos, acompanhados pelos aliados britânicos, têm adotado uma postura mais incisiva diante da expansão geopolítica chinesa. E, ainda assim, os interesses comerciais, não a defesa dos direitos humanos, parecem estar guiando a política de Donald Trump. No ano passado, segundo a admissão do próprio Trump, o governo americano decidiu não prosseguir com sanções contra a China por seu tratamento desumano com os uigures. O motivo: não prejudicar um acordo de comercial negociado à época entre os dois países. Embora indique estar disposto a enfrentar a China, o governo americano parece agir em interesse próprio, com o objetivo de enfraquecer seu mais forte competidor no comércio global. Essa imagem prejudica a construção de um esforço multilateral para conter a agressividade chinesa. E, diante de um regime poderoso como o chinês, o esforço multilateral é indispensável.
A Otan, por exemplo, tendo sido criada pelos países democráticos para conter a ameaça soviética, ainda mantém, em parte, o seu espírito original. Mas, apesar dos delírios de grandeza de Vladimir Putin, as atenções deveriam estar voltadas sobretudo para os movimentos chineses.
Na ONU, 23 países, liderados pelo Reino Unido, lançaram em outubro passado uma declaração condenando a política chinesa para os uigures. Mas, como resposta, outros 54 nações se pronunciaram a favor do regime de Pequim. As novas evidências sobre a perseguição à minoria étnica devem ser suficientes para uma nova ofensiva nas Nações Unidas - desta vez, uma que vá além das simples palavras condenatórias.
O presidente Donald Trump, no que pese seus defeitos, deu um primeiro passo para a adoção de medidas contra o governo chinês em retaliação à política de limpeza étnica contra a minoria muçulmana. Um ato do Executivo, aprovado pelo Congresso americano há poucos dias, reconhece as violações contra os uigures, condena o governo da China pela perseguição e inicia um processo de investigação que pode resultar em sanções contra as autoridades chinesas responsáveis pelos abusos. Que esse exemplo seja seguido, e que o episódio represente o marco de uma nova atitude da comunidade das nações diante do expansionismo do regime chinês.