O pouco que sobrou de legitimidade na Venezuela está por um fio. Nicolás Maduro é um ditador que mantém o poder de fato, mas não de direito; o Poder Judiciário há muito deixou de ser independente e age sempre alinhado com Maduro; o país tem uma Assembleia Constituinte convocada de forma ilegal. Sobrava apenas o verdadeiro Poder Legislativo do país, a Assembleia Nacional, que em 2015 tinha passado para as mãos das forças democráticas e cujo presidente, Juan Guaidó, tornou-se presidente interino do país depois que Maduro venceu uma eleição fraudulenta, sem reconhecimento da comunidade internacional. Mas, agora, o chavismo também avança sobre a Assembleia em uma nova votação sem o menor sinal de lisura.
As eleições para a Assembleia Nacional ocorridas em 6 de dezembro não têm nenhuma característica que faça delas um pleito legítimo. A autoridade eleitoral não foi escolhida pela Assembleia Nacional, conforme manda a Constituição do país, e sim pelo Judiciário chavista, resultando em uma Comissão Nacional Eleitoral disposta a trabalhar ativamente pela vitória de um dos lados. A CNE chegou até mesmo a aumentar, de forma ilegal, o número de deputados, inflando a Assembleia Nacional com mais 110 cadeiras, o que na prática dificultou a vida dos opositores a Maduro. Além disso, diversos relatos mostram que o voto dos venezuelanos nada tinha de livre ou mesmo secreto; as ameaças a funcionários públicos ou a quem depende dos programas de assistência do governo já nem são veladas, mas escancaradas. “Quem não vota não come”, chegou a afirmar Diosdado Cabello, presidente da ilegítima Assembleia Constituinte.
As eleições para a Assembleia Nacional ocorridas em 6 de dezembro não têm nenhuma característica que faça delas um pleito legítimo
A liberdade de escolha do eleitor também foi duramente afetada. Os líderes do campo democrático, como Guaidó, Henrique Capriles e Leopoldo López, não se sujeitaram a participar da farsa. O que sobrou de “oposição” ao chavismo nem pode ser chamado dessa forma, pois a Justiça “sequestrou” partidos como o Voluntad Popular, o Acción Democrática e o Primero Justicia, colocando à frente das legendas nomes dóceis ao regime bolivariano. Até mesmo partidos de esquerda que discordam de Maduro sofreram o mesmo tipo de intervenção. Foi nessas circunstâncias que o partido do ditador afirmou ter conquistado dois terços das cadeiras do Legislativo, fechadas as urnas.
O eleitor venezuelano mostrou seu rechaço a esse teatro eleitoral, com uma abstenção de 70% – apesar das ameaças do chavismo, é preciso lembrar. A rejeição interna veio acompanhada do repúdio internacional. No continente americano, 18 países – incluindo Estados Unidos, Brasil, Canadá e Colômbia – já afirmaram não reconhecer o resultado do pleito. A mesma posição foi tomada pelo Reino Unido e pela União Europeia. A comunidade internacional acerta ao não consentir com a farsa chavista, mas a postura pedirá outras definições.
No papel, os eleitos de 6 de dezembro assumem seu mandato ilegítimo no início de janeiro de 2021; teoricamente, a posse desses pseudodeputados encerraria o mandato parlamentar de Guaidó, que deixaria de ser presidente do Legislativo e, por consequência, presidente interino do país. As nações que rejeitam a eleição do último domingo terão de decidir se continuam reconhecendo a Assembleia Nacional eleita em 2015, presidida por Guaidó; a alternativa seria admitir a existência de um vácuo no Legislativo venezuelano, o que apenas aumentaria o impasse, já que não mais haveria quem pudesse reivindicar a presidência interina da Venezuela com base nas leis do país. Alguns países, como o Chile, o Reino Unido e os Estados Unidos, já anunciaram que seguirão considerando Guaidó o presidente legítimo; no entanto, o democrata Joe Biden, que manifestou apoio a Guaidó em 2019, ainda não disse se pretenderá manter esse reconhecimento caso sua vitória seja confirmada pelo Colégio Eleitoral norte-americano na próxima semana.
Para fortalecer sua posição, Guaidó convocou uma consulta popular ao longo desta semana, em que os venezuelanos poderão rejeitar o regime de Maduro, contestar o resultado da eleição de 6 de dezembro e aprovar um pedido de ajuda à comunidade internacional. O presidente interino continua a ser o líder mais popular no campo democrático, e precisa de um resultado bastante favorável na consulta. Infelizmente, as tentativas de virar a balança de poder na Venezuela a seu favor vêm falhando; sentado sobre as maiores reservas petrolíferas do mundo, Maduro tem se mostrado muito hábil em seguir comprando o apoio do alto comando das Forças Armadas do país, limitando as deserções a militares de patentes inferiores.
Enquanto Maduro seguir bancado pela força – seja das Forças Armadas, seja dos coletivos paramilitares, seja de seus parceiros narcoterroristas colombianos das Farc, seja dos poucos aliados internacionais como a Rússia –, uma população venezuelana faminta, desarmada e doente tem pouca ou nenhuma chance de ver a democracia retornar a seu país. A comunidade internacional tem rejeitado intervenções diretas que aumentem a instabilidade na Venezuela, preferindo trabalhar no campo diplomático e impondo sanções aos líderes bolivarianos. Intensificar esse esforço de modo a isolar Maduro também internamente é o melhor caminho para que o fim da ditadura e o retorno à democracia sejam um processo conduzido pelos próprios venezuelanos.
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