Atravessamos um momento histórico delicado no qual a clareza nas convicções e nos atos é fundamental. Como não se via há décadas, temos um país militarmente poderosíssimo atacando outro, mais fraco, que não o agrediu. Há destruição de cidades, centenas de inocentes mortos e o risco de o conflito ganhar proporções globais. É o tipo de situação explícita o bastante para não deixar sombra de dúvida sobre o quão injusta, perigosa e equivocada é. Exatamente por conta disso, a hesitação do presidente Jair Bolsonaro em condenar a invasão russa é surpreendente e difícil de ser compreendida.
A Rússia de Vladimir Putin é o principal parceiro econômico e militar das ditaduras de Cuba e da Venezuela, que o presidente Bolsonaro conhece muito bem e que corretamente critica com frequência, apontando, especialmente, para seus abusos no campo dos direitos humanos e no desprezo pela democracia. Portanto, o presidente sabe que não está lidando com uma potência que preza pela paz e pela liberdade. O reconhecimento dessa verdade deveria ser o suficiente para o Brasil evitar alguns dos erros que cometeu desde que esse triste episódio da história contemporânea ganhou as proporções atuais.
Uma das falhas mais graves foi a lentidão em retirar do país os brasileiros que lá estavam. Enquanto outros países emitiram alertas e convocavam seus cidadãos para deixarem a Ucrânia mesmo antes da invasão se consumar, o Itamaraty revelou que não tinha nem sequer um plano de evacuação quando Putin lançou as primeiras bombas, o que dá a entender que o Brasil apostou suas fichas numa suposta disposição para o diálogo do autocrata russo, como se fosse absurdo cogitar que ele realmente fizesse o que fez.
Mesmo agora, quando o número de vítimas fatais chega às centenas, o presidente brasileiro parece hesitar em condenar com clareza o que a Rússia fez. Neste sábado (26), três dias após a violenta e absurda invasão do território ucraniano pelo exército de Putin, Bolsonaro enfim resolveu falar do conflito por meio de sua conta no Twitter. Sua mensagem trata da remoção dos brasileiros, menciona a posição do Brasil “em defesa da soberania, da autodeterminação e da integridade territorial dos Estados” que, segundo ele, “sempre foi clara” e afirma que tal posição está sendo comunicada por meio dos “canais adequados para isso”. No entanto, a mensagem é encerrada sem fazer nem uma menção sequer à Rússia, o ente agressor diretamente responsável pelos mortos, feridos e refugiados – entre os quais estão os brasileiros que o governo, agora, corre para socorrer.
Ainda que a representação diplomática do Brasil tenha feito o que se esperava dela no Conselho de Segurança da ONU, votando a favor da resolução que condenava oficialmente a invasão – documento que acabou vetado pela própria Rússia -, a recusa do presidente em emitir ele mesmo qualquer crítica à flagrante violação da soberania ucraniana pelas tropas russas constrange a qualquer brasileiro de bom senso, que tenha ciência dos horrores da guerra. Não há malabarismo argumentativo capaz de amenizar o que Putin está fazendo e não há relativizações plausíveis.
Aliás, as decisões de Bolsonaro sobre o papel do país nessa crise têm provocado confusão desde antes de ela estourar com a invasão. Há cerca de dez dias, quando os tanques russos já se movimentavam de modo ameaçador na fronteira com a Ucrânia, o presidente escolheu manter uma viagem de fins comerciais para Moscou. Não se contentando com a assinatura de acordos em momento totalmente inoportuno, Bolsonaro fez questão de declarar, ao lado de Putin, que é “solidário à Rússia” sem especificar a que exatamente estava se referindo.
Não há malabarismo argumentativo capaz de amenizar o que Putin está fazendo e não há relativizações plausíveis
Quando as democracias mais relevantes do planeta estavam empenhadas em dissuadir a sanha militarista de Putin, obviamente, a viagem do presidente brasileiro foi lida pela comunidade internacional como um endosso ao principal responsável pela escalada das tensões, o que talvez justifique a “grande impaciência” com a qual a visita de Bolsonaro era esperada pelo Kremlin. Afinal, ali estava o líder de uma grande nação democrática do Ocidente demonstrando, orgulhosamente, sua amizade e solidariedade com a Rússia. Uma narrativa muito conveniente aos russos, que puderam usá-la para acusar de falsa a tese do suposto isolamento que o país enfrenta no mundo.
É certo que, naquele momento, os analistas internacionais se dividiam entre o alarmismo de uma invasão iminente e a leitura da posição de Putin como uma estratégia agressiva para conseguir melhores posições na mesa de negociação com as grandes potências, em face do risco de um desfecho violento. Porém, a situação exigia prudência e não era necessário um encontro entre os dois presidentes para garantir acordos comerciais, quando o tema mais importante era outro, sobretudo se considerarmos que tais promessas apalavradas não valem muita coisa num cenário de sanções econômicas cada vez mais fortes da comunidade internacional contra a Rússia.
Depois, em mais uma demonstração de ambiguidade, Bolsonaro desautorizou publicamente o que foi dito pelo vice-presidente Hamilton Mourão, quando este afirmou que o Brasil “não está neutro” e “não concorda com uma invasão do território ucraniano”, uma posição entendida como natural, tendo em vista a condição do Brasil de aliado extra-Otan.
A justificativa agora usada pelo presidente para explicar seu silêncio sobre a Rússia, de que a posição do Brasil é comunicada em fóruns adequados, também soa estranha dado o histórico do próprio Bolsonaro. Desde que assumiu o Planalto, por muito menos, ele não se eximiu de fazer comentários a respeito de diversas situações internacionais que não envolviam diretamente o país, mas eram passíveis de crítica por quem compartilha os valores morais e cívicos frequentemente invocados por ele.
Então, até que o presidente esclareça melhor, todo brasileiro de bem que lê no noticiário sobre as mortes provocadas por essa guerra insana prosseguirá se perguntando: por que Bolsonaro não condena de forma clara à violência da Rússia contra a Ucrânia? O que o motiva a tal omissão quando praticamente todos os líderes democráticos relevantes do Ocidente já se pronunciaram de forma mais corajosa e correta? E, indo mais além, por que não adota uma posição firme de sinalizar com que sanções fortes contribuirá para que o mundo volte à paz?
Para todos os efeitos, convém fazer a ressalva de que não se pretende ser injusto com a atual diplomacia brasileira. É da ciência de todos que atuam nesse campo o fato de que a oficialidade importa muito, o que coloca o Brasil numa posição evidentemente superior às lamentáveis abstenções da China, dos Emirados Árabes e da Índia, expressadas no Conselho de Segurança da ONU, e, logicamente, a léguas de distância da simpatia sistemática por regimes autoritários, como a que víamos quando o Itamaraty estava sob a regência do Partido dos Trabalhadores.
Porém, para quem acompanha atentamente a atuação do presidente ao longo de seu mandato, a postura repete um padrão infeliz. Parece ir de encontro ao que pensa seu próprio entorno, como as autoridades militares mais próximas do Planalto. Mesmo que estivesse pensando de forma exclusivamente eleitoral – o que seria triste -, é difícil entender que tipo de benefício essa postura pode trazer para quem quer que seja. As pessoas tendem a perceber a ambiguidade de governantes e isso gera incerteza, desconforto e desconfiança.
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