A “hospitalidade”, o “viver junto”, a “ecologia humana” são grandes questões do século 21. Já na década de 1930, sociólogos como Robert Park e George Simmell lançaram este debate quando de uma grande leva de migrações da Europa para os Estados Unidos – a Terra Prometida. No fim do milênio, o tema ganhou a preocupação de nomes como os dos filósofos Jacques Derrida, Tony Judt e Anne Dufourmantelle. Eles se esforçaram para transformar essa conversa num debate mundial, para o qual não lhes faltaram excelentes continuadores, como Richard Sennett, Zygmunt Bauman e Leonardo Boff – para citar três.
Estamos em meio a um movimento intelectual único e emocionante. Luc Ferry chama de “espiritualidade laica” essa busca por um mundo capaz de equacionar seus problemas – uma expressão cujo sentido deveria ser ensinado nas escolas. Mas a sociedade tem demorado a reagir à nova demanda de convivência entre povos diferentes, coletividades, meio ambiente, mentalidades... Bonito no discurso, uma Troia na hora de equacionar. É caso de estudo – e rápido. A constipação das fronteiras – com perdão ao comparativo – aproxima muito o mundo do período cinzento das ideologias nacionalistas. Sabemos para onde nos levaram. Fica a perplexidade – não teríamos aprendido nada com as duas grandes guerras?
O sociólogo Roberto DaMatta arriscou interpretar a negação da ideia de hospitalidade, justo no momento em que, como filosofia, ela alcança seu renascimento. Encontrou bom resultado: igualdade, convivência, diferença são conceitos que fluem melhor em meio a situações em que o outro não representa uma ameaça real. Lutávamos pelo fim da fome da África quando os africanos não eram nossos vizinhos de rua. Ao vê-los tão perto, forças de ordem prática solapam as razões de ordem humanitária. O grito “no meu quintal não” invoca o joio do pior dos tempos brotando em meio ao trigo das melhores intenções.
A acolhida do estrangeiro ameaçado é indiscutível. Precisa ser exemplificada
Dias atrás, contudo, a foto do menino sírio Aylan Kurdi, 3 anos, encontrado morto numa praia turca, se tornou mais que uma estatística de 2,5 mil refugiados mortos no mar apenas em 2015 – o ano que não vai terminar. Segundo a ONU, este ano 300 mil pessoas cruzaram o Mediterrâneo em busca de asilo. Um dos palpites é de que a imagem do pequeno Kurdi pode funcionar como um tufão contra a fúria política dos que se assustam com a proximidade, em sua praia, dos problemas universais. Funcionaria como a fotografia feita por Nick Ut, em 1972, da menina vietnamita Kim Phúc, nua, correndo depois de queimada pelo napalm. Ou o calvário das mães de Beslan, em 2004, diante das 156 crianças mortas por terroristas chechenos na Ossétia do Norte, território russo.
Há quem duvide de que a foto possa servir de gatilho para um surto hospitaleiro em meio aos estragos causados pela sociedade globalizada, consumista e individualista a níveis pós-humanos. Sorte lançada. De qualquer modo, impossível não lembrar do testamento deixado pela ensaísta norte-americana Susan Sontag, no livro Diante da dor dos outros. Ela rejeita uma ideia da qual foi partidária – a de que as pessoas se tornaram insensíveis – e reivindica que a voz da sociedade impotente, porém ávida por mudanças, seja ouvida. Resta saber como tornar possível essa política de ouvidorias, quando os próprios populares parecem ser os mais ferozes opositores da convivência entre os povos.
O abraço da chanceler da Alemanha, Angela Merkel, na menina palestina ameaçada de extradição pode ser uma boa resposta. Precisamos de líderes e de comunidades que se disponham a apressar saídas para o dilema dos refugiados, e com o grau de verdade expresso por Merkel. Só uma força-tarefa que envolva população e poder público pode tirar a palavra hospitalidade do mundo das ideias. Os islandeses que se ofereceram para receber refugiados em suas próprias casas forçaram uma resposta de seu governo. Jovens alemães criaram um site que lista quartos que podem ser alugados pelos refugiados.
Deixar seu país por motivos como uma oferta de trabalho no exterior já é suficientemente difícil. O refugiado não tem nem mesmo essa escolha. É uma questão de vida ou morte. Se ficar, mais cedo ou mais tarde perderá sua vida, vítima de uma guerra civil, de uma epidemia, de uma situação de violência generalizada causada pela falência do Estado, de perseguição política, religiosa ou ideológica. A acolhida do estrangeiro ameaçado é indiscutível. Precisa ser exemplificada. Se a morte de Aylan Kurdi der aos povos este juízo – inclusive fazendo que nós, brasileiros, não mais viremos as costas aos refugiados que estão entre nós –, teremos superado o pior dos perigos: o de esquecer quantas vidas foram consumidas para que chegássemos ao século 21. Fazer dele um tempo de cadáveres à deriva, em nome de cerquinhas étnicas, será um atestado de que escolhemos a barbárie à civilização.
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