No domingo, os apoiadores de Jair Bolsonaro que se reuniram na Avenida Paulista, em São Paulo, puderam assistir a um vídeo gravado pelo candidato do PSL e que foi exibido em telões instalados para a manifestação. Ali, Bolsonaro reagiu com veemência à denúncia, feita pelo jornal Folha de S.Paulo, de que sua campanha contaria com o apoio ilegal de empresários que estariam pagando a agências para promover o envio em massa de mensagens pelo WhatsApp.
“Conclamamos a todos vocês que continuem mobilizados e participem ativamente por ocasião das eleições do próximo domingo, de forma democrática. Sem mentiras, sem fake news, sem Folha de S.Paulo. Nós ganharemos esta guerra. Queremos a imprensa livre, mas com responsabilidade. A Folha de S.Paulo é o maior fake news do Brasil. Vocês não terão mais verba publicitária do governo. Imprensa livre, parabéns. Imprensa vendida, meus pêsames”, afirmou.
Compreende-se a indignação de Bolsonaro e seus apoiadores contra o jornal que publicou a reportagem sobre o suposto esquema no último dia 18. A denúncia, que ainda carece de comprovação, está sendo usada pela coligação de Fernando Haddad em uma tentativa de ganhar a eleição pela via da Justiça Eleitoral. E por isso mesmo há muitos que veem lógica no raciocínio segundo o qual o veículo que ataca o candidato ou o governante não deveria receber verba de publicidade governamental. Mas isso realmente faz sentido?
O que está em jogo, no fundo, é a própria independência da imprensa, independência essa que muitos governos tentam sufocar pelas mais diversas vias, incluindo a econômica. Para amedrontar um veículo de comunicação, há meios mais violentos e mais sutis, e a manipulação da publicidade governamental é um deles.
Ainda nos falta compreender a relevância de uma imprensa plural
Quando o governo conclui pela necessidade de uma campanha ou publicidade oficial, seu objetivo deve ser o de atingir a totalidade do público-alvo – seja a população toda, seja um público segmentado, dependendo do caso em questão. E o poder público tem à disposição um elenco formidável de meios para promover essa divulgação, o que também inclui os veículos de comunicação. Qualquer que seja a opção escolhida, é natural que a maior parte do investimento publicitário seja dirigida aos veículos ou plataformas de maior público ou audiência. Este é um critério puramente técnico; quem manda aqui é a frieza dos números, não o calor das paixões ou antipatias.
Essa postura de neutralidade em relação ao ponto de vista dos jornais, revistas, rádios, sites e emissoras de televisão é a mais saudável para a democracia, para a liberdade de imprensa e para a sociedade como um todo. Quando o governo gasta de forma racional a verba publicitária, baseado em critérios de audiência, ele garante que o dinheiro do contribuinte não será usado de acordo com as preferências pessoais do governante, privilegiando amigos e prejudicando adversários. E ainda garante que nenhum cidadão será privado de receber uma informação importante apenas por preferir um veículo mais crítico ao governo. É assim que, no caso da publicidade governamental, se aplica a impessoalidade, um dos princípios que regem a administração pública.
Por isso, há dois erros graves que se pode cometer ao violar o princípio da impessoalidade para investir em publicidade de acordo com preferências políticas. Um deles é o de ignorar veículos relevantes em seus segmentos como retaliação pela postura crítica: é o que promete Bolsonaro, no caso da Folha, e que o PT já quis no passado. Em março de 2015, o então presidente da legenda, Rui Falcão, defendia “uma nova política de anúncios para os veículos da grande mídia”, após o sucesso estrondoso da primeira grande passeata contra o governo Dilma – para Falcão, o mero fato de os veículos de comunicação terem divulgado os atos, com inserções ao vivo na programação, significava “apoio” e “convocação”, e por isso deveria haver uma vingança, na forma da restrição de anúncios. A consequência disso, como afirmamos, é a punição ao leitor ou espectador desses veículos e a agressão à independência da imprensa, forçada a se “domesticar” para não perder recursos que podem ser importantes para fechar suas contas.
Leia também: Bolsonaro e o WhatsApp (editorial de 19 de outubro de 2018)
Nossas convicções: Liberdade de expressão
O outro erro é o gasto generoso com veículos irrelevantes, como também foi o caso do petismo: no fim de 2014, o jornalista Fernando Rodrigues, da Folha de S.Paulo (irônica coincidência), mostrou que o governo e empresas estatais irrigavam abundantemente com verba publicitária blogs e sites alinhados ao petismo, mas que tinham muito menos leitores que outras publicações. Ao privilegiar os amigos, o governo não apenas desrespeitava a impessoalidade, mas também desperdiçava o dinheiro do contribuinte.
Mas e quando não se trata apenas de divergências legítimas de opinião, e sim da disseminação de notícias falsas, de erros jornalísticos? Nesses casos, o ordenamento jurídico dispõe de meios suficientes de reparação. Cabe à Justiça, por exemplo, analisar se houve erro não intencional ou dolo, e decidir pela sanção adequada. O importante, aqui, é ressaltar a necessidade da via judicial; do contrário, sob a desculpa de um suposto combate ao mau jornalismo, abre-se a porta para a arbitrariedade, com a censura a veículos de comunicação motivada puramente por discordâncias político-ideológicas.
Se tantas pessoas consideram natural que um governo boicote veículos relevantes na aplicação da verba publicitária como retaliação por críticas, é porque o Brasil infelizmente tem uma longa tradição nessa prática, especialmente nos âmbitos estadual e municipal, e porque ainda nos falta compreender a relevância de uma imprensa plural, com veículos de vários matizes que promovam um honesto debate de ideias. A provável eleição de Bolsonaro oferece ao Brasil uma chance de romper com várias práticas nefastas que se tornaram comuns nos últimos anos, e também neste aspecto, o da relação com a imprensa, temos uma chance de amadurecimento. A declaração de domingo preocupa, porque deixa subentendida a mesma mentalidade do petismo a respeito da mídia, ainda que com sinal ideológico trocado. Mas ainda há tempo para uma correção de rumos e para que tenhamos um novo patamar de republicanismo, desenvolvendo uma cultura que reconheça o valor da pluralidade e da independência do jornalismo.
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