Ao declarar a constitucionalidade da Lei de Mídia, a Suprema Corte, alinhada ao kirchnerismo, desfere um golpe contra a liberdade de imprensa
Bolivarianos em toda a América do Sul, inclusive no Brasil, comemoraram a decisão da Suprema Corte argentina que, na terça-feira, considerou constitucional a Lei de Mídia proposta pelo governo de Cristina Kirchner. Sob o pretexto de impedir a concentração dos veículos de comunicação, a legislação na verdade é uma tentativa de calar a imprensa que não se curvou à Casa Rosada.
A nova legislação, que vinha sendo questionada na Justiça pelo grupo Clarín, determina que as concessões de rádio e televisão sejam divididas em três grupos iguais: o das emissoras estatais, o das emissoras privadas e o das emissoras de grupos sem fins lucrativos, como sindicatos, igrejas e fundações. As tevês comerciais só poderão atingir 35% da população, enquanto os canais estatais podem chegar a 100% do território nacional. Empresas que atuam na televisão aberta não podem estar presentes na tevê a cabo e vice-versa. E cada grupo de comunicação pode ter um número máximo de 24 canais de tevê por assinatura. Os grupos que hoje estão acima desse limite terão de escolher com que concessões querem ficar, e colocar as demais à disposição do governo. Estima-se que a oferta chegue a 330 canais.
O maior perdedor com a nova legislação é, sem dúvida, o Clarín. O grupo começou apoiando o falecido marido de Cristina, Néstor Kirchner, que assumiu a Presidência depois do caos econômico do início da década passada, mas passou a fazer oposição ao governo no primeiro mandato de Cristina Kirchner. O maior conglomerado de imprensa da Argentina não apenas terá de se desfazer de parte de suas concessões, como também pode ter de enfrentar uma violência ainda maior. Dependendo da interpretação que se dá à decisão da Suprema Corte, já teria vencido o prazo para os grupos de comunicação escolherem de que canais abrem mão; nesse caso, seria a Administração Federal de Serviços de Comunicação (Afsca) a responsável por determinar quais canais seriam vendidos e quais ficariam com o Clarín. O órgão governamental poderia, por exemplo, forçar o conglomerado a ficar na tevê aberta e se desfazer da tevê a cabo, mais lucrativa. Para piorar, é o Tribunal de Contas kirchnerista que definiria o preço de venda dos canais, que poderia ser artificialmente baixo para reduzir a compensação que o Clarín teria por ser obrigado a abrir mão dos canais.
Todas essas circunstâncias são mais que suficientes para entender que o caráter "democratizante" da Lei de Mídia é mera aparência. Com o pretexto de diversificar a propriedade dos veículos de comunicação e, com isso, estimular a concorrência, o que a lei procura é esvaziar a imprensa independente. Não é à toa que a decisão de terça-feira provocou o repúdio da Associação Internacional de Radiodifusão e da Sociedade Interamericana de Imprensa, e assanhou aqueles que sonham com o "controle social da mídia" tão querido por Lula, Franklin Martins e José Dirceu.
Soa como um alento que a população pareça estar cansada dos desmandos de Cristina Kirchner. Dias antes da decisão da Suprema Corte, a presidente havia sofrido uma derrota eleitoral considerável: seu grupo teve apenas 32% dos votos nas eleições que renovaram parte do parlamento. Ela continua tendo maioria no Congresso, mas não o suficiente para alterar a Constituição e conseguir a permissão para concorrer a um terceiro mandato, como pretendia. Inflação em alta, manipulação de dados econômicos, protecionismo e crises de abastecimento esgarçam a paciência dos argentinos. Mas, em vez de atacar estes problemas, parece mais importante amordaçar a imprensa. Seguindo um recente raciocínio lulista, talvez lá, como aqui, seja mesmo a imprensa que "avacalhe a política"...