Com o início do terceiro governo Lula, o problema da inflação voltou às discussões públicas. O presidente, antes mesmo de assumir, vinha assacando críticas ácidas contra a taxa de juros e o teto de gastos públicos imposto por lei aprovada no governo de Michel Temer. Após assumir a Presidência, Lula não arrefeceu suas críticas; pelo contrário, ampliou os ataques ao presidente do Banco Central (BC) quando o Conselho de Política Monetária (Copom) manteve a taxa básica de juros, a Selic, em 13,75% ao ano diante de inflação prevista na faixa dos 6%.
Para sustentar suas críticas, Lula usa um argumento que, aos olhos dos leigos e de boa parte da população, parece nobre e a favor dos pobres, numa atitude para tentar mostrar ser ele o único defensor das famílias de baixa renda e daqueles excluídos do bem-estar social. A conexão entre o argumento – evidentemente nobre e humanitário – e a proposta de baixar juros na marra e estourar o teto de gastos é, porém, falsa e pode agir para explodir a inflação e massacrar financeiramente justamente os pobres e os excluídos que Lula diz defender. Embora seja fartamente debatida e analisada nos meios de imprensa, a inflação revisita os países sempre que alguma agressão à lógica econômica exacerba as causas inflacionárias por decorrência de medidas populistas ou teoricamente ilógicas.
A conexão entre a defesa dos pobres e a proposta de baixar juros na marra e estourar o teto de gastos é falsa e pode agir para explodir a inflação e massacrar financeiramente justamente os pobres e os excluídos que Lula diz defender
A inflação, entendida como aumento dos preços, é doença que tem múltiplas causas e padece de uma situação dramática: muitas vezes, duas ou três variáveis que, sozinhas, não produzem efeitos elevadores de preços, quando ocorrem simultaneamente de forma combinada, fazem a inflação explodir com todos os seus efeitos maléficos sobre a sociedade em geral. Por exemplo, quando Lula diz que não vai respeitar o teto de gastos públicos enquanto houver pobres e miseráveis no Brasil, e propõe a revogação da lei que definiu tal teto (como efetivamente ocorreu na PEC fura-teto), ele não leva em conta vários aspectos e riscos, especialmente as circunstâncias em que os gastos excessivos e os déficits fiscais vão ocorrer. Uma coisa é o governo elevar déficits em um país que não tenha histórico de déficits e cuja dívida pública é inexistente ou muito baixa. Outra coisa bem diferente, e muito perigosa, é aumentar os gastos e estourar o rombo fiscal quando a dívida pública bruta é alta e já está no teto considerável limítrofe para as condições econômicas do país.
A discussão lógica e tecnicamente eficiente sobre o problema da inflação – que é um dos temas mais complexos da ciência econômica – exige conhecimento teórico, domínio da história da inflação e, principalmente, entendimento dos efeitos de cada uma das várias causas que provocam esse mal econômico. Um dos exemplos é o próprio caso brasileiro, pelo menos em quatro momentos significativos de sua história, quando a inflação atingiu níveis elevados, inibiu o crescimento econômico e causou mais pobreza e desigualdade de renda. Nunca é demais reforçar que dois dos grandes males sociais que a inflação provoca são o crescimento da pobreza e aumento da desigualdade de renda.
Os quatro momentos importantes em que a inflação se tornou a principal doença econômica perpassaram os anos 1964, 1974, 1984, 1994 e 2014; se o governo Lula seguir em sua lógica de ignorar as causas do processo inflacionário, o problema pode se repetir em 2024, perpetuando a escrita (rompida apenas em 2004) de uma crise inflacionária a cada dez anos, graças à repetição sistemática do histórico de má gestão macroeconômica, e jogando a nação de novo na mesma vala de outrora. Além disso, um mínimo de bom senso deveria levar os governantes a prestar atenção na trajetória de outros países (sobretudo na América Latina) que vêm sendo duramente atingidos pela inflação e empobrecendo sua população, como agora mesmo está ocorrendo com a Argentina.
Outro aspecto diz respeito às críticas ásperas direcionadas ao presidente do BC, Roberto Campos Neto, que só não encontraram terreno fértil para piorar de vez o clima e gerar sinais de crise graças a dois fatores: primeiro, o presidente e a diretoria do BC têm mandato fixo de quatro anos nos termos da lei que estabeleceu a autonomia do órgão (o mandato do presidente do BC termina no fim de 2024, portanto, dois anos após o início do atual mandato de Lula); segundo, o presidente do BC e o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não seguiram na linha beligerante de Lula, seja pela falta de disposição de ambos para exasperar o conflito verbal, seja porque acreditam que Lula está desempenhando seu papel de populista e poderia não seguir a linha de irresponsabilidade fiscal e monetária que ele mesmo anuncia.
Um mínimo de bom senso deveria levar os governantes a prestar atenção na trajetória de outros países que vêm sendo duramente atingidos pela inflação e empobrecendo sua população, como agora mesmo está ocorrendo com a Argentina
Os intrincados aspectos da inflação e as teorias publicadas nos últimos 200 anos a respeito do processo inflacionário, numa tentativa de compreender a experiência mundial a esse respeito, são de escasso domínio público, o que abre amplo leque de opções para discursos, propostas e medidas erradas e nocivas quanto ao enfrentamento do mal inflacionário, uma doença crônica que retorna sempre que medidas erradas são cometidas. As crenças erradas a respeito prejudicam o enfrentamento da inflação e a busca de crescimento econômico consistente. Por coincidência, o intelectual que mais empreendeu uma cruzada contra a ignorância e a demagogia sobre o problema inflacionário foi o economista Roberto Campos – avô do atual presidente do Banco Central –, especialmente quando foi ministro do Planejamento de 1964 a 1967, no governo Castello Branco.
Naquele fim de governo João Goulart, o Brasil tinha o desafio de enfrentar uma inflação que castigava o país justamente pelo populismo fiscal que vinha de Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e do próprio Goulart, período em que o Brasil fez exatamente o que Lula pensa fazer agora: emitir moeda à vontade sem considerar os efeitos negativos que isso pode ter sobre a inflação. Roberto Campos, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1991, alertava para a compreensão errada sobre as causas da inflação. Para ele, os políticos e boa parte da população veem a inflação como o processo de remarcação de preços, e passam a culpar os empresários e produtores como malvados, ao ponto de haver perseguição e prisão de empresários, como ocorreu em 1986 com o famigerado Plano Cruzado, do presidente José Sarney, liderado pelo ministro da Fazenda, Dilson Funaro, um neófito em economia. De outro lado estão aqueles que entendem a inflação como a criação de moeda em níveis que superam a expansão monetária compatível com o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), e descobrem que o culpado pela inflação é o governo.
O Poder Executivo é a entidade jurídica encarregada de executar o orçamento fiscal, arrecadar tributos e administrar os gastos do governo; se ele manda no Banco Central como mera autarquia sob o comando do presidente da República e do ministro da Fazenda, a gestão do estoque de moeda em circulação e a expansão monetária são obras do governo. Logo, sendo a inflação a expansão monetária da qual a remarcação de preços é mera consequência, o culpado pela inflação é o governo. A compreensão correta do problema e a identificação das causas e seus autores são condições necessárias para o enfrentamento desse mal tão presente na vida das nações.
Se a inflação voltar por força de medidas populistas e de irresponsabilidade macroeconômica, o país seguirá em sua triste sina de perder décadas de crescimento pífio
Não é razoável supor que um homem alçado ao terceiro mandato na Presidência da República de um país do tamanho do Brasil não tenha apreendido pelos menos os rudimentos teóricos e os efeitos práticos de medidas de política econômica. Ou é isso ou se trata de imensa irresponsabilidade sair pregando que não quer saber de teto de gastos nem de uso da taxa de juros para combater a inflação. O argumento de que se deve fazer o possível para reduzir a pobreza é aceitável, porém, desde que preservadas as condições para o crescimento econômico e o desenvolvimento social de forma sustentável, sem o que não se reduz a pobreza nem a miséria. Pelo contrário: inflação inibe o crescimento, gera desemprego, reduz o poder de compra dos salários, cria pobreza, miséria e desigualdade de renda.
No Brasil, os historiadores econômicos já produziram farto material demonstrando que a convivência de décadas com a inflação e o baixo crescimento responde, entre outras causas, pela pobreza e pela desigualdade de renda. É assim que o Brasil tem sido e, se a inflação voltar por força de medidas populistas e de irresponsabilidade macroeconômica, o país seguirá em sua triste sina de perder décadas de crescimento pífio. Não se trata de buscar o equilíbrio fiscal a qualquer custo e em qualquer circunstância, mas sim de entender em que quadro geral da economia brasileira estão sendo analisados os gastos públicos, déficits fiscais, taxa de juros e taxa de inflação, como caminho para adoção das medidas eficazes diante dos problemas econômicos e suas causas.
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