Como deve ser a participação do setor privado no esforço nacional de vacinação contra a Covid-19? Essa pergunta veio à tona com a assinatura da Lei 14.125, mas também com a iniciativa de alguns empresários, como Luciano Hang e Carlos Wizard, de alterar as regras estabelecidas pela lei recém-sancionada. Como acréscimo à discussão, já surgiu ao menos uma denúncia de aquisição ilícita de vacinas pela iniciativa privada, em Minas Gerais, e que está sendo investigada pela Anvisa e pela Polícia Federal; e há uma decisão judicial de primeira instância no Distrito Federal que considerou a lei inconstitucional e permitiu que três entidades possam adquirir vacinas para uso próprio.
O artigo 2.º da Lei 14.125 afirma que “pessoas jurídicas de direito privado” podem adquirir, por conta própria, qualquer vacina autorizada pela Anvisa, mas precisam repassar todas as doses ao Sistema Único de Saúde enquanto os grupos prioritários estiverem sendo vacinados. Depois disso, ficam obrigadas a entregar pelo menos metade da compra ao governo, e aplicar gratuitamente o restante – por exemplo, vacinando os funcionários das empresas envolvidas na compra, bem como suas famílias. Já os empresários Hang e Wizard lançaram um abaixo-assinado defendendo a possibilidade de uso imediato, por parte da iniciativa privada, de todas as doses que chegarem a ser compradas, sem repasse ao SUS. A dupla se encontrou com o ministro da Economia, Paulo Guedes, que na manhã de quinta-feira havia defendido, em audiência virtual no Senado, a permissão de compra com repasse parcial das doses. Ao fim do encontro, os empresários prometeram doar 10 milhões de doses ao SUS. Nesta sexta-feira, foi a vez de o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, receber Wizard.
A necessidade de repasse total das vacinas compradas pela iniciativa privada deveria valer apenas enquanto fossem vacinados os “grupos de risco” – idosos e pessoas com comorbidades, que têm maior chance de desenvolver formas graves da Covid-19
De imediato, há algumas ideias bastante evidentes a nortear esse debate. A primeira delas é a de que vacinar o máximo possível de brasileiros no menor tempo possível é um objetivo que deve unir o país: todos os poderes, todas as esferas de governo, iniciativa privada e terceiro setor precisam estar empenhados em acelerar a vacinação. Além disso, sabe-se que uma das características mais perversas da Covid-19 é seu potencial de levar ao colapso estruturas hospitalares, ocupadas por quem desenvolve as formas mais graves da doença. Por fim, também é óbvio que vacinar a força de trabalho permitiria o retorno rápido dos negócios hoje paralisados em todo o país, embora a maioria dos trabalhadores não pertença a nenhum grupo prioritário e, portanto, esteja no fim da fila pelas regras do governo.
Levando-se todos esses aspectos em consideração, emerge uma solução intermediária. De fato, a lei atual acaba desestimulando a compra de vacinas pela iniciativa privada, pois, ainda que o Brasil tenha muito mais doses disponíveis e consiga aplicá-las rapidamente, levaria muito tempo até que todos os grupos prioritários fossem vacinados, finalmente liberando as empresas para usar metade de suas encomendas. Para contornar esse problema, a necessidade de repasse total das vacinas compradas pela iniciativa privada deveria valer apenas enquanto fosse conduzida a vacinação dos chamados “grupos de risco” – aqueles que, pela idade avançada ou por terem outras doenças, as ditas “comorbidades”, têm maior chance de desenvolver formas graves da Covid-19, necessitando de internação, respiradores ou vagas em UTIs. A imunização deste grupo já reduziria consideravelmente a pressão sobre o sistema hospitalar, oferecendo mais segurança para a reabertura de negócios, com rígidos protocolos de higiene e lotação.
Atingido este objetivo, a iniciativa privada estaria liberada para usar ao menos parte significativa de suas novas encomendas de vacinas, enquanto o poder público seguiria vacinando outros grupos prioritários – aqueles que não têm tanto risco de ter um quadro grave de Covid-19, mas que carregam um risco maior de contaminação por terem profissões ou estarem em situações que proporcionam contato interpessoal mais intenso, como professores, trabalhadores do transporte coletivo, agentes penitenciários etc. Ficaria estabelecida uma autêntica cooperação entre poder público e iniciativa privada, contribuindo para se atingir o objetivo global – vacinar o máximo possível de brasileiros no menor prazo de tempo – mais rapidamente.
Alterar a lei, no entanto, exigirá o desmonte de um argumento ideológico segundo o qual a participação da iniciativa privada garantiria privilégios aos mais ricos. Ora, isso é justamente o que acontece atualmente, com o poder público bancando a integralidade das compras de vacinas: o dinheiro dos impostos de todos os brasileiros, inclusive dos mais pobres, é que está viabilizando a vacinação dos mais ricos, que poderiam pagar para se vacinar. A verdadeira transferência de renda do mais rico para o mais pobre ocorre quando um empresário adquire vacinas e as aplica gratuitamente (a proposta de Hang e Wizard deixa isso explícito) em seus funcionários e suas famílias. Desde que as encomendas de vacinas por parte de empresas não estejam privando o poder público das doses que pretendia adquirir, não há por que falar em “ricos furando a fila”, até porque o maior número de beneficiados será de trabalhadores.
A legislação precisa estimular, e não dificultar, que o Brasil seja capaz de trazer o maior número possível de vacinas eventualmente disponíveis no mercado internacional, mas a redação atual da lei é um desestímulo à participação do setor privado. Que, num primeiro momento, se destinem todas as vacinas ao grupo de risco é consequência de um necessário pacto de responsabilidade e solidariedade entre todos os brasileiros, é algo que o dinheiro não compra. Mas, depois disso, não há motivo algum para se bloquear a colaboração intensa entre os setores público e privado, salvando vidas e a economia rapidamente e simultaneamente.
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